segunda-feira, fevereiro 28, 2011

Sem pena

Pátio à Rua do Arco de São Mamede, em São Bento

Compadeço-me de quem
não teve sorte na vida,
gente que foi impedida
de se empenhar, mal ou bem,
na luta contra a corrente
cada vez mais imponente
da pobreza e do desdém.
Mas não tenho qualquer pena
dos que caem em desgraça
depois de uma vida plena
de embustes e de trapaça,
gente que usou o poder
e a força do seu lugar
para oprimir, humilhar
e empobrecer
quem devia defender.

quinta-feira, fevereiro 24, 2011

Cilada cidade

Tejo com Lisboa ao fundo
Direi flor floresta planta
direi mar de quem comigo
sente prender-lhe a garganta
o nó daquilo que digo.
Direi jardim pátio poço
direi cisterna de quem
me estende o peito o pescoço
para que os diga também.
De ti direi
chaminé do navio do meu corpo
ave do mar que não sei
se pousada em qualquer porto
que jamais atingirei.
Direi secura se curo
da sede que sob a pele
me segue o sangue inseguro
quando me debruço dele.
Direi casa quadra canto
direi cilada cidade:
palavras feitas no espanto
da própria incomodidade.
("Lucro Lírico", 1973, rev.)

segunda-feira, fevereiro 21, 2011

Resistir

Cais das colunas
Ruínas ambulantes, inventamos
mil formas de ilusão e de disfarce
mas o mais que logramos
é ver o tempo a esboroar-se
e com ele as certezas de algum dia
reduzidas a pura fantasia.
Só que nem tudo está perdido,
há sempre mundos a descobrir
e a vida só faz sentido
com a palavra de ordem: resistir.

quinta-feira, fevereiro 17, 2011

Antes que

Em São Bento

Antes que o céu se tolde e tudo em volta
nos imponha a urgência de soltar
o inconformado grito de revolta
que andamos desde há muito a sufocar.
Antes que a vida vire um quarto escuro
e a casa fique ainda mais sombria.
Antes que o rio da raiva galgue o muro
e nos acrescente melancolia.
Antes que seja tarde e já não haja
quem, juntando-se a nós, também reaja.

terça-feira, fevereiro 15, 2011

Delito de opinião

(Preferia passadeira verde, evidentemente, mas foi a que me estenderam...)

Hoje cometo delito de opinião,
induzido pela dupla Ana Vidal/Pedro Correia,
a quem saúdo - bem como ao resto do "gang".

segunda-feira, fevereiro 14, 2011

Do amor

Jardim da Estrela
Fala a fala finíssima das folhas
e nos jardins suspensos dos seus olhos
aves doidas de sol cantam o canto
perfumado dos pátios e dos poços.
("Lucro Lírico", 1973)

quinta-feira, fevereiro 10, 2011

Agora

O Tejo, no Cais do Sodré
Não me digam que espere, eu quero já.
Cedo era ontem, amanhã é tarde.
Capitão de navios que já não há,
não vou deixar que o tempo me deserde.

Portanto, agora!
Hoje é que eu sou no gume da navalha.
Todo o minuto de outra hora
é a margem-viagem que me falha.

Já é que eu sou e não me peçam nada
para amanhã, que é tarde.
Larguei todo o meu pano à madrugada,
não vou deixar que o tempo me deserde.

("A Porta da Europa", 1978, rev.)

segunda-feira, fevereiro 07, 2011

Em nome

Terreiro do Paço
Em nome dos que acreditam
ser possível ir sempre mais além
e desprezando o que convém
não se amedrontam nem hesitam.
Em nome dos que gritam
contra a mentira e a tirania
e defrontando o poder do dia
dizem não à opressão.
Em nome dos que enjeitam ser cativos
do nevoeiro da solidão.
Em nome dos que teimam em estar vivos.

quinta-feira, fevereiro 03, 2011

O que importa

Tejo lisboeta
Importa ousar, importa não ter medo
de ir além do que alcança o nosso olhar,
partir à aventura e procurar
o mistério das coisas, o segredo
da linha que divide o céu do mar
e há-de ter mundo atrás por explorar.
Importa defrontar a hora adversa
e, quando tudo em volta se dispersa,
bater o pé, seguir em frente, andar
e sobretudo não ir na conversa.