quinta-feira, setembro 27, 2012

O espelho

Jardim 9 de Abril (Janelas Verdes)
O meu lugar é onde estou
porque eu não sou
de lugar nenhum.
Olho-me ao espelho e não me reconheço:
sou apenas mais um
foragido do que estremeço.

Houve tempo em que eu era
do lugar donde viera
e o espelho dava-me um rosto
despido de ironia e de desgosto.

Depois tudo mudou
ou de repente ficou velho
e o meu lugar passou a ser
onde estou
com o rosto que o espelho
insiste em me devolver.

domingo, setembro 23, 2012

Triste Outono

Partiram no Outono e nunca mais voltaram
nem vão voltar
os que amei e me deixaram
esta dor que me há-de acompanhar
até ele me vir também buscar.
Não me falem, portanto, do Outono
nem das folhas caídas pelo chão,
triste imagem do abandono
que à noite me rouba o sono
e agrava a solidão.

Antes quero para sempre o Verão.

quinta-feira, setembro 20, 2012

As letras certas

Praça do Império
Nós falamos de amor, mas não sabemos
as letras certas da palavra amor,
numa mistura de alegria e dor
capaz de todos os extremos.

Nós falamos de amor, mas ignoramos
a quais das letras da palavra amor
correspondem o frio e o calor
em que amiúde balançamos.

E, se ao falar de amor, não nos sossega
fazê-lo sem ter conta nem medida,
é por sentirmos que não há na vida
nada maior que a mútua entrega.

domingo, setembro 16, 2012

Buganvília

Rua de O Século
Buganvília, indiscreta trepadeira,
que sabes tudo sobre o meu amor,
vai dizer-lhe que à hora do sol-pôr
hás-de levar-me até à sua beira.

Diz-lhe que não achei melhor maneira
de lá chegar e, seja como for,
a noite que virá, ó trepadeira,
é minha e tua e do meu amor.

quinta-feira, setembro 13, 2012

Molesta ideia

Campo das Cebolas
Dia a dia a ideia da adiada ceifeira
vem fatal ter comigo e não vejo maneira
de a escorraçar de todo da cabeça.
Persegue-me, cão raivoso e insolente
que a toda a hora parece afiar o dente
para mo ferrar, não lhe interessa
onde, desde que o faça lépido e depressa.
De manhã à noite, em luta constante,
a molesta ideia toma conta de mim,
não me dando tréguas por um instante,
sem que eu veja forma de lhe pôr fim.

domingo, setembro 09, 2012

Direi flor

Rua do Jasmim
Direi flor, floresta, planta,
direi mar de quem comigo
sente prender-lhe a garganta
o nó daquilo que eu digo.

Direi jardim, pátio, poço,
direi cisterna de quem
me estende o peito, o pescoço,
para que os diga também.

De ti direi
chaminé do navio do meu corpo,
ave marinha que sei
saudosa de algum porto
que jamais atingirei.

Direi secura, se curo
da sede que sob a pele
me segue o sangue inseguro
quando me debruço dele.

Direi casa, quadra, canto,
direi cilada, cidade:
palavras feitas do espanto
da própria incomodidade.

domingo, setembro 02, 2012

Não existimos

Ribeira das Naus
Vamos fazer de conta que foi tudo
mero fruto da nossa solidão
e o planeta rodou solene e mudo
na indiferença de sermos ou não
ousados cavaleiros do momento
à garupa do próprio pensamento.

Vamos fazer de conta que chegámos
de outra galáxia ou outro continente
e alheios e temerários ancorámos
no cais erguido algures contra a corrente
de ideias feitas, modas, preconceitos
e mais normas e regras e preceitos.

Vamos fazer de conta que emergimos
do nada para o nada desta hora
e olhando à nossa volta sem demora
soubemos que afinal não existimos.