terça-feira, novembro 30, 2004

Lisboa

Nada sabes de mim
e, no entanto, eu amo-te,
pássaro inquieto e frágil que descansas
na pequena janela do meu tédio.

Nada sabes de mim
e, no entanto, eu amo-te.

Podia debruçar-me
e súbito falar-te,
mas ignoro as palavras necessárias.
Estou aqui de passagem
e não trago
outra bagagem que não seja o espanto
incrédulo de amar-te.

Admito que é possível esquecer-te,
quando do rio soltarem as gaivotas
o seu piar comum ao fim da tarde.
Mas eu estarei então demasiado longe
e apenas rodeado da lembrança,
sob águas profundíssimas e quietas.

("Lucro Lírico", 1973)

segunda-feira, novembro 29, 2004

Palavras

As palavras sucumbem ao vazio
da própria pequenez.
Nenhum cais tem a forma do navio,
nenhum navio a forma das marés.

("Lucro Lírico", 1973)

Palavras II

Há palavras com pássaros por dentro,
onde é difícil circular:
têm patas e asas, muitas penas.
É a medo que invento
a força de lhes pegar
com as minhas mãos pequenas.

Há palavras sulcadas de navios,
onde é difícil viajar:
faltam bandeiras e velas.
É por entre calafrios
que me lanço a navegar
no mar eriçado delas.

Há palavras panóplias de mil armas,
pistolas velhas e espadas.
Meu prazer é desarmá-las
ante as tias alarmadas.

Há palavras quais facas espanholas,
brilham no gume afiado,
navalhas de ponta e mola
para o destino aprazado.
Mas destas disse-me a escola
que lhes passasse de lado.

("A Porta da Europa", 1978)