quinta-feira, março 31, 2011

O cochilo de Deus

Campo de papoilas
Dizem que Deus não dorme, mas suponho
que deve às vezes cochilar um pouco
e num ápice o mundo semi-louco
transforma em pesadelo o que era sonho.
Só à luz do mistério, que não é
da ordem natural e da razão
mas pertença do espírito e da fé,
pode alguém encontrar explicação
para tanta desgraça que acontece
sem aviso de tempo nem lugar
a tanta gente que não a merece.
Mas não estaria Deus a cochilar?

segunda-feira, março 28, 2011

Amarrem a poesia

Jardim do Príncipe Real
Amarrem a poesia,
ponham-lhe algemas, peias, grades
contra as mais amplas liberdades,
como dantes se dizia.
Fechem-na bem entre paredes
e não a deixem navegar
com seus barcos e redes.
Imponham-lhe artes de marear,
bússolas, regras e bandeiras
ou mil e uma maneiras
obrigatórias de voar.
Vão ver como ela se liberta
e na hora certa
retoma o seu lugar.

quinta-feira, março 24, 2011

O futuro

Acrílico sobre tela/TL

Quero lá saber do passado,
nevoento e pesado.
O que me ocupa é o futuro,
que adivinho além do muro
do presente.
Não que me seja indiferente
o que fiz ou não fiz,
feliz ou infeliz.
Mas é uma conversa
que já não me interessa.
Sou sem remorsos
igual a mim até aos ossos
e faço tenção
de só dar atenção
ao tempo por haver,
não ao que deixei perder.

segunda-feira, março 21, 2011

O pássaro esquivo

Tejo meu

(No Dia da Poesia)

Vem pousar-me amiúde na janela
um pássaro esquivo
que tão depressa me interpela
e me faz sentir vivo
como veloz desaparece
e de pronto me esquece.

Ave intrigante e vadia
que ora me chama ora me foge
dei-lhe o nome de poesia
e tanto a celebro hoje
como em qualquer outro dia.

quinta-feira, março 17, 2011

Palavras como pedras

Parque Eduardo VII

Palavras como pedras atiradas
contra o muro de silêncio que nos tolhe
palavras ondas a chocar no molhe
que as subtrai às areias ansiadas

Palavras como setas disparadas
sobre o alvo da noite que as recolhe
até que a flor do dia se desfolhe
e dê lugar a novas madrugadas

Palavras como o silvo de uma bala
a despertar a mente adormecida
de quem se acomodou à pequenez

e não descola do sofá da sala
como se não houvesse uma outra vida
a reclamar lá fora a sua vez.

segunda-feira, março 14, 2011

Clamor

Rossio

Se fosse apenas um murmúrio, a agitação
de asas de breves pássaros inquietos,
ou se entendesse que não
passava de uma onda de contornos certos
e sem problemas para a navegação,
a quem perturbaria este clamor?
Mas não. É uma explosão de almas aflitas
em ânsias de futuro e de calor
contra o marasmo, o atraso e as infinitas
doses de angústia e solidão
de um tempo de mentira e servidão.

quinta-feira, março 10, 2011

Tédio

Calçada da Glória

Quando noto que não há nada
que me esteja a preocupar,
fico muito preocupado.
Porque a vida é complicada
e não adianta disfarçar
a sensação de enfado
que, sem ironia,
nos oferece o dia-a-dia,
assente cada vez mais
num pilar de horas iguais.
E, por mais que se queira
procurar-lhe remédio,
não se vislumbra maneira
de exorcizar o tédio,
essa doença que mata,
impenitente e exacta.

segunda-feira, março 07, 2011

A roda

Acrílico sobre tela

Não me interessa saber quem inventou a roda,
interessa-me a roda.
Esta, uma vez inventada,
jamais deixou de estar na moda
e até deu origem à roda dentada,
sem a qual não se teria avançado nada.

Cada invenção dá sempre lugar a muitas
outras que se sucedem em cadeia
e a verdade é que a mais pequena ideia
traz por dentro mil perguntas
em busca de rio que as leve ao mar
e as ponha a navegar.

quinta-feira, março 03, 2011

Há palavras

À vela no Tejo
Há palavras com pássaros por dentro,
onde é difícil circular:
têm patas e asas, muitas penas.
É a medo que invento
a força de lhes pegar
com as minhas mãos pequenas.

Há palavras sulcadas de navios,
onde é difícil viajar:
faltam bandeiras e velas.
É por entre calafrios
que me lanço a navegar
no mar eriçado delas.

Há palavras panóplias de mil armas,
pistolas velhas e espadas.
Meu prazer é desarmá-las
ante as tias alarmadas.

Há palavras quais facas espanholas,
brilham no gume afiado,
navalhas de ponta e mola
para o destino aprazado.
Mas destas disse-me a escola
que lhes passasse de lado.

("A Porta da Europa", 1978, rev.)