segunda-feira, outubro 31, 2011

Rumo ao esquecimento

Cais do Sodré
Quando eu partir para a grande viagem
rumo ao nosso destino mais que certo,
não haverá mudanças na paisagem
nem o que é longe ficará mais perto.
Como hás-de ver, irá continuar
o assobio do vento na folhagem
do jardim que inventámos rente ao mar.
E, sendo o mundo tão perfeito assim,
acabarás por te esquecer de mim.

quinta-feira, outubro 27, 2011

Aquele dia

Portas do Sol
De súbito entre a sombria
roda dos dias iguais
decerto há-de vir um dia
que se afastará dos mais:
um dia claro e perfeito
como a curva do teu peito
onde o meu busca repouso
e tão raro e luminoso
que afrontará o cinzento
correr dos dias banais
em que me invento e te invento
para sermos o momento
que não findará jamais.

segunda-feira, outubro 24, 2011

Liberdade

Príncipe Real
As letras do teu nome, uma por uma,
escrevi a medo sobre o quadro preto.
Foi no tempo em que tudo era secreto
e a esperança de futuro quase nenhuma.

As letras do teu nome, uma por uma,
ecoaram na sala e atraíram
a raiva dos medíocres que não viam
o mar imenso para lá da espuma.

Só que nada puderam de verdade,
porque ficaste minha, liberdade.

quinta-feira, outubro 20, 2011

Emboscada

Rossio
Antes que a noite chegue e nos estenda
a sua rede, como de emboscada.
Antes que atrás da noite a madrugada
assome e, ela também, nos surpreenda.

Antes que, rematando a manhã clara,
a luz do meio-dia nos aguarde.
Antes que, sendo cedo, seja tarde
para aquilo que o tempo nos prepara.

Antes que o sol de todo se despeça,
deixando escuridão e nada mais.
Antes que tu te vás e eu te esqueça

e não subsistam traços nem sinais
de ti gravados na minha cabeça
e todas as horas fiquem iguais.

segunda-feira, outubro 17, 2011

Aparição

Rua do Arco a São Mamede
Há mil anos sentado à soleira da porta,
todos os sons, todos os cheiros,
ainda os mais longínquos, os mais ténues,
me falavam de ti.

Era o fragor dos motores,
o marulho das ondas,
o silvo dos navios,
o apito das traineiras,
o pio cruzado das gaivotas,
o cantochão das cigarras.

Era o odor dos frutos
derreando as árvores
e o estalido dos ramos secos
sucumbindo ao calor da tarde.

Era tudo pronto, enfim,
para a vertigem
de nos gostarmos
e eis que apareceste quando já
desistia de te ver chegar.

terça-feira, outubro 11, 2011

Procurar-te

Rua do Amparo
Tudo o que sempre fiz foi procurar-te
aqui, ali, além, em toda a parte
por onde andei.
E de todas as vezes que te achei
outra coisa não quis senão perder-te
para de novo te buscar.
Mas, como quem procura se converte
no que tenta encontrar,
supondo que era a ti que perseguia,
era afinal de mim que me perdia.

sexta-feira, outubro 07, 2011

O dia sem ocaso

Acrílico sobre tela / TL, 2008
Se a vida não for a busca incessante
do dia sem ocaso, aquele dia
luminoso e repleto de poesia
em que tudo acontece num instante
e nesse mesmo instante vira eterno

Se a vida não for luta contra o inverno
que sem dar qualquer trégua a ameaça
ou tiver complacência com a taça
de veneno que o tempo a toda a hora
lhe estende e não souber deitá-la fora

Há-de ser tão vazia, tão pequena,
que afinal nem sequer valeu a pena.

terça-feira, outubro 04, 2011

O impossível

Palácio da Ajuda
Persegue o invisível, o que está
para além do que abarca o teu olhar,
o que mora na sombra do que há
por detrás do que é fácil observar.

Persegue o indizível, o que não
se logra por palavras traduzir,
o que te faz bater o coração
e a boca não consegue transmitir.

Persegue o impossível, o que habita
as altas nuvens ou reside apenas
no âmago das coisas mais pequenas.

Não te acomodes ao que te limita,
rebenta as grades, voa, salta o muro,
rasga o silêncio e aterra no futuro.