quinta-feira, outubro 28, 2010

Mútua entrega

Do Jardim António Nobre (São Pedro de Alcântara)

Nós falamos de amor, mas não sabemos
as letras certas da palavra amor,
essa mistura de alegria e dor
que vai a todos os extremos.

Nós falamos de amor, mas ignoramos
a qual das letras da palavra amor
correspondem o frio e o calor
em que amiúde baloiçamos.

E, no falar de amor, se nos sossega
que o façamos sem conta nem medida
é por sentirmos que não há na vida
nada maior que a mútua entrega.

segunda-feira, outubro 25, 2010

Assalto

Travessa da Queimada

Antes o tiro inesperado
numa esquina qualquer do Bairro Alto
que o constante assalto
longamente premeditado
para agir de forma lenta
mas nem por isso menos violenta.

Antes o silvo de uma bala
riscando rápida o ar
e deixando-nos sem fala
na urgência de gritar
que o ataque persistente
à alma da gente.

Antes a lâmina afiada
a rasgar-nos a garganta
que esta dor fina e demorada
mas tanta.

quinta-feira, outubro 21, 2010

Os dias sem ti

Rua Cecílio de Sousa

Não adiantou riscar do calendário
os dias longe de ti
porque o relógio não roda ao contrário
e o tempo que não vivi
a teu lado
continuou a contar naturalmente
como se o tivéssemos passado
juntos e a olhar em frente.

O que não partilhamos e até parece
às vezes fazer sentido
é afinal tempo perdido
que nos envelhece.

segunda-feira, outubro 18, 2010

Ainda a poesia

Jardim Roque Gameiro, Cais do Sodré
A poesia não tem emenda,
prefere a vadiagem.
Por mais que se pretenda
arrumá-la no estojo de viagem,
dar-lhe mesa e cama lavada,
é o mesmo que nada,
porque a poesia não se domestica,
não se amarra nem fica
alguma vez enclausurada.
Antes é ave fugidia
que voa e pousa onde quer,
seja de noite ou de dia,
sem curar de saber
dos limites ou barreiras
com que, de várias maneiras,
a pretendem prender.

quinta-feira, outubro 14, 2010

Compaixão

Largo de São Domingos

Podes ter tudo, poder e dinheiro,
saúde a rodos, energia, pão,
mas nunca serás justo nem inteiro
se não tiveres o dom da compaixão,
se não souberes a tempo dar a mão
a quem à tua volta precisar
nem que seja da graça de um olhar.

Se não te comover a fragilidade,
que afinal todos temos em comum
mas em dose diferente cada um,
jamais hás-de ser gente de verdade.

segunda-feira, outubro 11, 2010

Um instante

Barlavento

Não durou muito tempo, mas deixou-me
escritas na alma as letras do seu nome.
Era uma ave esquiva e fugidia
e em seus olhos de cor roubada ao mar
transportava a luz toda que há no dia
além de uma suave maresia
que brevemente embebedava o ar.
Foi apenas um instante, mas deixou
esta marca que nunca mais passou.

quinta-feira, outubro 07, 2010

O mais é espuma

Largo de Dom João da Câmara

Poucas certezas tenho e mesmo essas
foram, não raro, erguidas sobre a areia
sem qualquer resistência à maré cheia
das decepções, mentiras e promessas
de que a vida se faz, contra as pregressas
convicções radicadas na ideia
de o mundo ser premeditado e certo,
ondas no mar e dunas no deserto.

Mas, acima do vago e inconsistente
fluir dos dias, basta-me saber
que te tenho comigo e estás presente
para o que der e vier
sem me cobrar coisa alguma
e isso é que importa, o mais é espuma.

segunda-feira, outubro 04, 2010

À procura de ti

Mar de Armação de Pêra

Não estranhes se me avistares
ou te disserem que me viram
em sítios invulgares
às horas mais sombrias.
Não te enganaste nem te mentiram,
pois eu pertenço a todos os lugares
e há certos dias
em que tanto posso estar aqui
como em Paris, Roma, Istambul,
a leste, oeste, norte, sul,
porque há muito me perdi
à procura de ti.