segunda-feira, janeiro 30, 2006

Neve algarvia

Lembro-me bem, foi há mais de meio século,
minha mãe cozinhava o jantar
e eu espreitava o quintal através da janela.

Era quase de noite e estava frio,
ali onde toda a gente
pensa que não há disso.
De súbito, os pingos de chuva embranqueceram
e pousavam, fiapos de algodão,
sobre os canteiros, as plantas, a muralha,
que era o pano de fundo do quintal.

Não sei se minha mãe alguma vez vira nevar,
só sei que logo dividimos a surpresa
e ficámos a admirar pela noite dentro
o espantoso espectáculo.

Na manhã seguinte, as ruas
vestiam de branco, imitando
os campos de amendoeiras.

Fui para a escola pelos trilhos
das carroças dos camponeses,
mal sabendo que nenhuma neve
das que veria depois nos caminhos do mundo
havia de ter o encanto
daquela algarvia de 1954.

(2006)

sexta-feira, janeiro 27, 2006

Fim-de-semana

Nem todos os dias são cinzentos como o de hoje,
nem todos nos convidam à depressão.
Amanhã haverá de novo sol e vai cumprir-se
o programa que gizei para o fim-de-semana.

De manhã cedo - e agora acordo cada vez mais cedo -,
em dias como este sinto que sou matusalénico,
tenho a idade do planeta.

Mas depois tudo se recompõe
e sou outra vez jovem e acredito
que amanhã haverá sol e vai cumprir-se
o programa que gizei para o fim-de-semana.

(2006)

terça-feira, janeiro 24, 2006

Esperança

Quando a esperança renasce, quando ao fundo
da noite espreita, enfim, a luz do dia,
quando as coisas mais simples deste mundo
parecem devolver-nos a alegria,

Quando o sol da manhã afasta o medo
que nos atava à dor e à solidão,
quando não resta já qualquer segredo
sobre aquilo a que importa dizer não,

É possível, então, saltar o muro
e abraçar sem reservas o futuro.

(2006)

sexta-feira, janeiro 20, 2006

Ausência

Tacteio na noite a tua ausência,
sem pecado nem inocência.

Fio de navalha triste e fria,
transmite a dor da invernia.

E não há sonho que a encubra,
feita que é de vento e chuva.

(2006)

segunda-feira, janeiro 16, 2006

A casa

A casa não era só a casa, tinha mundo
por dentro das paredes e dos móveis.
Nenhuma chave fechava
os quartos e as arcas,
onde habitava a ternura.

Quando me lembro da casa,
beirando a estrada, com o poço em frente,
não me detenho na fachada.
Antes percorro os rostos
que a povoaram e lhe deram história,
os queridos rostos da família.

O tempo, esse inimigo odioso,
semeia a dor e o esquecimento,
mas não apaga o amor.

(2006)

sexta-feira, janeiro 13, 2006

Dias assim

Há dias assim, em que nada corre bem:
o telefone não toca, não traz a tua voz,
o sol não aparece, só há nevoeiro,
o encontro marcado não acontece
e o almoço fica sem sabor.

Há dias assim, em que nada corre bem:
à tarde o tédio, à noite a solidão.

Mas, ao fundo da noite, espreita o amanhã
e, quem sabe, meu amor, talvez
o telefone toque e traga a tua voz,
o sol afaste o nevoeiro,
o encontro marcado aconteça,
o almoço retome sabor
e eu escreva outro poema.

(2006)

terça-feira, janeiro 10, 2006

Palavras

Por mais que a gente busque, não encontra
a palavra necessária.
Jamais uma palavra diz com precisão
o que se sente.
As palavras são peixes fugidios,
evitam sempre a rede que lançamos.

Quando eu digo amor,
não será só amor que quero dizer,
mas sobretudo a sede incontrolável
de te afagar,
de me afogar em ti.

Podemos percorrer os dicionários,
viajantes dos continentes todos,
que sempre há-de escapar-nos
o porto da palavra
que sem cessar perseguimos.

Quando eu digo manhã,
não será só manhã que quero dizer,
mas sobretudo a luminosa intensidade
do teu olhar
atravessando o meu olhar.

Não há palavras que saciem
a nossa fome de palavras.

(2006)

quinta-feira, janeiro 05, 2006

Ânimo

Há dias em que o desânimo
vem sentar-se à mesa
e tenta meter conversa,
como se fôssemos velhos amigos,
talvez mesmo companheiros.

Já me tem acontecido dar-lhe troco,
deixando-me enredar
nas suas artimanhas.
Mas logo penso em ti,
na força que me trazes,
e saio para a rua de cabeça erguida,
disposto a mudar o mundo.

(2006)

segunda-feira, janeiro 02, 2006

O tempo

Um ano atrás do outro: esse artifício
com que nos queremos iludir
é um mero exercício
de dividir.

A cada noite sobrevém o dia,
numa infinita sucessão,
como à tristeza a alegria.
Mas não nos basta, não.

Só que o tempo é indiferente
a muros e a barreiras
e sem cuidar de maneiras
segue em frente.

(2006)