sexta-feira, abril 28, 2006

O melhor

O melhor é soltar o coração
e deixá-lo, sem freios nem prisões,
correr as praias da invenção.

O melhor é libertá-lo
de quaisquer opressões,
jovem e feliz cavalo.

O melhor é partir à desfilada
sem olhar a mais nada.

(2006)

segunda-feira, abril 24, 2006

País

País estilhaçado, estraçalhado,
estiraçado entre o medo e a maresia,
país estalactite, estalagmite,
país de bruços que nos braços
carrega sombras e cansaços.

País dilacerado, lacerado,
encalacrado até aos gorgomilos,
país adiamento, aditamento,
país padrasto dos seus próprios filhos.

País que eu amo, que desamo
para logo a seguir amar de novo,
país que tem o nome por que chamo
aquilo que estremeço até ao osso.

(2006)

terça-feira, abril 18, 2006

Antes

Antes que sejas tarde
sem que tenhas sido cedo.
Antes que a noite guarde
o que nos era segredo.
Antes que venha o medo
do fogo que em nós arde.

Antes que escureça
e tudo fique incerto.
Antes que sejas deserto
e eu te esqueça.

(2006)

quarta-feira, abril 12, 2006

Tempo de olaias

Desço as Escadinhas da Arrochela
e aspiro o cheiro que anda no ar,
vindo do Jardim das Francesinhas.
São as olaias que, em Abril,
florescem um pouco por todo o lado,
festejando a Páscoa lisboeta.

Nestes luminosos dias,
a cidade veste o melhor traje
e perfuma-se, grácil rapariga,
convidando a amá-la.

(2006)

segunda-feira, abril 10, 2006

Por ti

É por ti, para ti, que ainda escrevo,
quando a mão já me pesa
e a noite vem veloz, com os seus medos,
a sua face lívida, os segredos
de que se veste e alimenta.

É por ti, para ti, que ainda escrevo
entre o cansaço e a incerteza
sobre a hora seguinte, o que me espera,
esquecido de quem fui, da primavera
que de súbito em mim se fez inverno.

É por ti, para ti, que ainda escrevo,
porque é isso que quero, isso me devo.

(2006)

sexta-feira, abril 07, 2006

Overdose

Tinha pouco mais de 20 anos
e morreu de repente
no domingo à noite.
Foi overdose,
disseram-me no restaurante.

Tive entretanto o cuidado
de me informar sobre o assunto
e concluí que não foi
overdose coisa nenhuma,
mas abandono.

Um abandono que tinha,
também ele,
pouco mais de 20 anos.

(2006)

quarta-feira, abril 05, 2006

Cidade

Direi flor, floresta, planta,
direi mar de quem comigo
sente prender-lhe a garganta
o nó daquilo que eu digo.

Direi jardim, pátio, poço,
direi cisterna de quem
me estende o peito, o pescoço,
para que os diga também.

De ti direi
chaminé do navio do meu corpo,
ave marinha que sei
saudosa de qualquer porto
que jamais atingirei.

Direi secura, se curo
da sede que sob a pele
me segue o sangue inseguro
quando me debruço dele.

Direi casa, quadra, canto,
direi cilada, cidade:
palavras feitas do espanto
da própria incomodidade.

("Lucro Lírico", 1973)

segunda-feira, abril 03, 2006

Destino do mar

Os mais terão por destino
sete palmos de terra e um caixão.
Eu, porém, desde menino
sei que não.

Não, não é a terra que me chama.
É outra voz que, da infância,
me namora e reclama:
a voz do mar,
vencendo, breve, a distância
que teima em nos separar.

("Destino do Mar", 1991)