quarta-feira, novembro 30, 2005

Veneza

Tudo tão perecível, tudo tão
frágil, tão efémero
e, no entanto,
tudo tão perto do eterno.

Juntamo-nos as mãos como quem busca,
no acto de as juntar,
a certeza das coisas com que nunca
poderá contar.

E é tão simples o gesto
que esquecemos o resto.

(1975)

domingo, novembro 27, 2005

Eles

Filhos do deus acaso, eles não sabem
que há outros mundos para além do próprio mundo.
Ignoram as marés, o movimento das estrelas,
o ritmo incessante com que as noites
dão lugar às madrugadas.

Desconhecem que, atrás de cada porta,
por mais fechada, há sempre uma outra porta
escancarando uma janela.
Tão-pouco os orienta o deslumbrante
ciclo das estações, o suceder
das aves no telhado.

Para eles não há qualquer mistério
no renovo das folhas pela Primavera.

E eu não consigo entender
ao que vieram.

(2005)

quinta-feira, novembro 24, 2005

Alegria

1.

Quando já não havia solução
e o futuro estava preso por um fio,
quando as respostas eram todas "não"
e era sempre de noite e sempre frio,
quando ao fim da escuridão
faltava a luz do desafio,

tu chegaste e fez-se dia
e foi-me devolvida a alegria.

2.

Quando já não houver mais solução
e o futuro estiver preso por um fio,
quando as respostas forem todas "não"
e for sempre de noite e sempre frio,
quando ao fim da escuridão
faltar a luz do desafio,

espero de ti outro dia
que me traga de volta a alegria.

(2005)

terça-feira, novembro 22, 2005

Decisão

Hoje decidi que não vou morrer nunca,
pondo assim cobro
ao péssimo hábito da espécie humana.

A decisão foi difícil, é claro,
mas agora só me falta descobrir
a forma de a levar à prática.

(2005)

sábado, novembro 19, 2005

Momento

Tudo esqueci e tudo perdoei,
não me resta qualquer ressentimento,
dono apenas do que sei
que me escapa como o vento.

Nenhuma coisa é mais do que o momento
em que a tive e a deixei.

(2005)

quarta-feira, novembro 16, 2005

Divisão

Deslumbram-me as pessoas, o olhar
umas vezes tranquilo, outras aflito,
com que nos fitam do fundo
do seu próprio mistério.

Enternece-me o ar com que respiram
umas vezes amor e outras ira,
agora a dor, logo a malícia.

Entre o deslumbramento e a ternura
me divido.

(2005)

terça-feira, novembro 15, 2005

As palavras

As palavras, constantes inimigas
que me inquietam o sono,
trazem-me, entre o silêncio e o abandono,
todas as dores antigas.

Mas são elas que, amigas,
tornam real o meu sonho
de ignorar o medonho
mar das intrigas.

(2005)

sexta-feira, novembro 11, 2005

Madrugada

Cola os ouvidos ao silêncio, quando os pássaros
voltearem na casa abandonada.
Só então conhecerás o rumor dos passos
que precedem a madrugada.

Toda a vida é um quadro em que os tons claros
dão por vezes lugar aos mais escuros.
Mas não é raro
florescerem manhãs por trás de velhos muros.

Deixa portanto à solta o coração
e acolhe a luz que espreita além da escuridão.

(2005)

segunda-feira, novembro 07, 2005

Tudo e nada

Dou-te o que queres
e ainda o que penso que tu queres
e te inibes de dizer.

Mas valem pouco as coisas que te dou,
porque são apenas coisas.
O importante é o imaterial,
o que fica do crepúsculo
ou do nascer do sol.

Tudo o que te dou não é nada,
se comparado ao que te devo.

(2005)

sexta-feira, novembro 04, 2005

Não

Sou das praias batidas pelo vento,
dos campos secos a perder de vista,
dos dias que anoitecem de repente,
das noites sem manhã como saída.

Sou dos mares azuis que não navego,
dos caminhos de pó e erva nas bermas,
das casas velhas onde cresce o medo,
das portas que se fecham a quem chega.

Sou de um país de sal e solidão,
onde importa voltar a dizer não.

(2005)

quarta-feira, novembro 02, 2005

Os queridos mortos

A minha mãe, o meu pai, a minha irmã,
as minhas tias e avós,
todos esses que amei e por quem fui amado
e um dia se evolaram
ante o meu pasmo e dor sem nome.

A senhora que, todas as manhãs,
passava à minha porta
e não tornei a ver, porque também partiu
para a terra do mistério indecifrável,
como soube meses depois.

E o amável vizinho com quem nunca troquei
mais do que um bom dia, boa tarde,
e deixei de encontrar no autocarro.

Os queridos mortos,
esses que têm garantida a eternidade
da minha memória.

(2005)