quarta-feira, março 30, 2005

Ervas daninhas

Já me ensinaste um dia,
nem me lembro quando,
como surgem no quintal
roseiras que não plantámos
e dão flor as ameixeiras.

Das figueiras disseste que dão fruto
sem que tenham florido,
o que faz, afinal, todo o sentido.

Mas nunca me contaste como nascem
as daninhas ervas que recobrem
os velhos muros e os destroem.

(2005)

segunda-feira, março 28, 2005

Os serrenhos

Nos domingos de Verão, de manhã cedo,
passavam na estrada, à nossa porta,
carroças cheias de crianças, homens e mulheres.

Vinham da serra, quase Alentejo,
e iam ver o mar.
Lembro-me dos seus trajos pobres,
dos seus rostos morenos
e da alegria que mostravam.

Mais tarde, já na praia,
havíamos de vê-los, junto à espuma das ondas,
saltitando nas roupas íntimas,
que se colavam aos corpos marcados pelo sol.

E, embora exaustos, ao cair do dia,
de regresso ao ramerrão das suas vidas,
os serrenhos ainda cantariam.

(2005)

quarta-feira, março 23, 2005

Falta

Construímos a casa, alheios ao medo,
por entre a solidão e o arvoredo.
Uma varanda dava para o mar.

Depois chegou a noite e o enredo
do escuro se infiltrou como em segredo
por todos os recantos do lugar.

Foi quando tu partiste e muito cedo
dei por falta de ti e do luar.

(2005)

segunda-feira, março 21, 2005

Amor e ódio

Umas vezes floresta, outras deserto,
umas vezes cetim, outras cotim,
umas vezes veludo, outras estopa.

Umas vezes de longe, outras de perto,
umas vezes princípio, outras fim,
umas vezes piranha, outras garoupa.

Umas vezes de noite, outras de dia,
umas vezes silêncio, outras ruído,
umas vezes o amor que me alumia,
outras vezes um ódio sem sentido.

(2005)

quinta-feira, março 17, 2005

Irmão das árvores

Indiferente ao calor, ao vento, ao frio,
poeta irmão das árvores, fixei
meus pés, minha raíz, junto de um rio,
na planície mais verde que encontrei.

Dei-me de abrigo às aves e escutei
seus cânticos de mágoa e de alegria.
Em flores e frutos sãos me derramei,
para gáudio da gente que os colhia.

E hoje, às folhas que sinto a cada hora
voarem-me dos ramos (ou dos braços?),
digo sem hesitar que há mais espaços
além deste em que o tempo se demora.

(2005)

terça-feira, março 15, 2005

Noite insinuante

Insinua-se a noite em nossos corpos,
como um rio que no mar se dissimula:
tu vens dessas paragens onde a lua
se alimenta de sombras e remorsos
e eu trago o peso enorme dos enganos
que me percorrem os ossos.

Mas não tememos nada: os oceanos
são as ruas da noite que inventamos.

(2005)

domingo, março 13, 2005

Olha lá fora

Olha lá fora as aves como voam céleres
sobre a copa das árvores, que entretanto floriram.
É novamente primavera (quem diria ?)
e nós aqui com tantos medos e incertezas.

Deixa que tome a tua mão e te conduza,
para lá da janela que a noite embaciara,
em busca da manhã onde reside a luz
que sai do coração da madrugada.

(2005)

quinta-feira, março 10, 2005

Gente

Gente a que me entreguei sem nada em troca
e logo se perdeu na multidão,
para apenas deixar na minha boca
o travo amargo da desilusão.

Gente que amei e a quem dei tudo,
sem a mira de lucro ou dividendo,
para me abandonar, surpreso e mudo,
de coração doendo.

Gente por que sofri,
mas a quem perdoei e já esqueci.

(2005)

terça-feira, março 08, 2005

No campo

As veredas serpenteiam entre arbustos rasteiros
e nós vamos por elas como quem, sem rumo,
procura incessantemente uma lembrança longínqua.

De vez em quando há um frémito qualquer.
É um bicho assustado que rasteja
e se esconde entre o restolho.

As cigarras rebentam ao calor da tarde,
mas à nossa passagem silenciam
o seu canto antiquíssimo e monótono.

E nós lá prosseguimos, indiferentes
ao castigo do sol que cai a pique.

(2005)

domingo, março 06, 2005

Aguarela

Não se via ninguém, estavam desertas
as ruas de Sanlúcar sob o sol andaluz
e apenas se ouvia ao longe
o som de uma guitarra adormecendo a tarde.

Um cão latiu sonolento
no olival ali perto.

Foi então que me surgiste, bailarina
de flamenco,
como quem estivera sempre nessa esquina
para me acordar a tempo.

(2005)

quarta-feira, março 02, 2005

Os mendigos

Havia muitos mendigos, eram
velhos lobos do mar que tinham perdido os seus barcos.
Pelo menos era isso que diziam
e agora andavam de terra em terra arrastando andrajos.

A tia Helena dava-lhes café,
algum pão, uns figos secos,
e sobretudo sabia arrancar-lhes histórias,
que nem sempre seriam heróicas, mas tinham
todas algo de mágico.

Alguns passavam a noite
no quintal por entre o feno
e partiam tão cedo na manhã
que nunca achámos mais que a sua ausência.

(2005)