Argumento

Foto TL

Já tenho uma desculpa para quando
me aparecer a grande ceifeira:
espera um pouco, minha amiga,
tenho as estantes cheias
e ainda nem li metade.

Espero que ela seja sensível
ao meu hábil argumento.

O amigo das aves

Foto TL

No jardim do Príncipe Real
há um velho que todos os dias
se senta em certo banco
e como um íman atrai as aves.
Não é que despreze a restante passarada
que por ali esvoaça,
mas já reparei que dedica
especial atenção aos pardais,
prodigalizando-lhes migalhas de pão,
grãos de milho ou de trigo
(não sei ao certo, olho-os de longe,
não vá perturbar-lhes a intimidade).
Se qualquer dia deixar de os ver,
ao velho e aos pássaros,
foi decerto porque estes o levaram
num voo feliz e definitivo
ao lugar a que todos eles
afinal pertencem.

Medo

Rua da Quintinha
Foto TL

Inventei um medo para o resto dos dias:
o de não conseguir viver sem ti.
O medo de ficar de mãos vazias
e sofrer noites inda mais frias
que todas as noites que já conheci.

Deixa-me então seguir primeiro
para a casa final do nevoeiro.

Partir

Calçada do Combro
Foto TL

Vontade de partir, de largar tudo,
de acordar amanhã num hotel em Veneza,
de deixar o passado, o futuro, o mundo,
baralhando as cartas expostas na mesa.

Vontade de partir, abandonar
as mínimas coisas algum dia amadas
e procurar no mapa das estradas
o que teima em faltar.

Vontade de partir sem um aceno
sequer de despedida
e, de um modo sereno,
voltar ao zero da vida.

Tejo

Foto TL

Quando a sede de mar me turva os olhos,
é no Tejo que a sacio, embora saiba
que me iludo como quem
cede à miragem do oásis.

Impresso há muito na retina,
é ante o rio-mar, cada manhã,
que deito contas à vida.

Meu antidepressivo, às vezes verde
e outras azul se bem lhe calha,
o Tejo mata-me a sede
e devolve-me a alma.

Ofício diário

Praça
dos
Restauradores
Foto TL

Toda a poesia é um recado
com destinatário
mais ou menos disfarçado.
Eu, mal te vi,
dei-me ao ofício diário
de escrever para ti.

Perdição

Praça
das Flores
Foto TL

Corpo que rasga a noite e vai deixando
atrás de si a luz da madrugada,
assim te desenhei em sonhos, quando
além dos sonhos não havia nada.

Fogueira que recusa o lume brando
das convenções e afronta a encruzilhada
dos dias, tal um anjo iluminando
tudo em redor ao brilho de uma espada,

Eis como te quis ver, antes que fosses
um rosto e sobretudo um coração,
uns olhos claros e uns lábios doces

E eu me perdesse em ti como se não
houvesse mundo além do que te trouxe
à minha inebriante perdição.

Portugueses

Feira
da Ladra
Foto TL

Desistem facilmente.
Nada do que começam tem continuidade
e a sua mente
tende a fechar-se à novidade.
Nem sei de quem se dê com mais prazer
à maldição de se render.

Crêem que, por obra e graça
do destino marcado,
tudo se há-de compor, pois tudo passa
e eles têm o fado,
com que exorcizam a desgraça.

Amo-os do mesmo passo que desamo
para os tornar a amar mil vezes,
preso ao amor com que nos chamo
portugueses.

O segredo

Conde-Barão
Foto TL

O segredo está no amor,
é evidente,
mas também em sabermos
afastar do nosso convívio
o que não presta.
Só quem se libertou
do medíocre e do vazio
poderá ser feliz.

Bebedeira

Rua da
Mãe-d'água
(ao Príncipe Real)
Foto TL


Basta-me o teu olhar, essa maneira
de me fitares assim:
a grande bebedeira
de gostares de mim.

Inverno

Rua de São Bento
Foto TL, 2007


Nas ruas de Lisboa há cada vez mais gente
que fala sozinha pelos cotovelos
sem que tenha telemóvel
e muito menos auricular.

E nos eléctricos e autocarros
há quem clame por um novo Salazar,
como se não tivesse bastado o velho.

Cinzenta e cabisbaixa,
a cidade está a pedir
que este inverno passe depressa.

(2007)

A amizade

Acrílico sobre tela
Torquato da Luz, 2006

Ao contrário do que pensam os distraídos
(para não usar outro termo),
a amizade não é um self-service,
que se utiliza quando convém.
A amizade é exigente,
pede constante atenção ao outro.

Estão errados os que entendem
que ser amigo
é beber uns copos junto, trocar umas tretas.

A amizade só é devida
a quem a merece.

(2007)