domingo, maio 29, 2005

Enquanto

Enquanto não é noite
e o sol do teu olhar é um incêndio
e o teu riso me traz a alegria
dos momentos que fazem
a vida valer a pena.

Enquanto sobre as ondas do teu peito
eu posso descansar
e ouvir como respiras.

Enquanto lentamente a tua boca
me percorre e acalma
a sede que o meu corpo tem de ti.

Enquanto não é noite
e o dia é para sempre.

(2005)

quarta-feira, maio 25, 2005

Algarve

Do mar saíam potros e sereias,
potros alados e sereias louras
como o trigo e o ouro das areias
do meu país azul de pedras mouras.

Nos campos e nas vilas e aldeias,
por todo o lado um cheiro a maresia
embebedava o ar e as ideias,
no país onde nunca anoitecia.

Mas, de repente, o dia escureceu
e os potros e sereias desertaram
para outros mares mais frios e distantes.

E foi então que vi que era só eu
a guardar a imagem que levaram
do meu país que já não é o de antes.

(2005)

segunda-feira, maio 23, 2005

A feira

A 15 de Novembro vinha a feira
coroar-nos a longa impaciência.
Nos dias anteriores, o sonho fora o carrocel
e as mágicas tendas
que povoariam as ruas.
Será que alguma vez fui tão feliz
como nessas alturas?

Há uma foto esmaecida no álbum de família,
em que, de pé, sobre uma cadeira,
seguro na mão direita
um fio que termina numa pequena bola
(suponho que de papel),
prenunciando os ioiôs.

Sempre me disseram que essa prova
de que, afinal, tive infância
fora feita na feira por um retratista.
Só que hoje, ao olhá-la, acho que não sou eu,
mas o outro de mim, que se perdeu
ou perdi de vista.

(2005)

sexta-feira, maio 20, 2005

Tudo e nada

No tempo em que eu sabia tudo,
os rios corriam sem esforço
e o mundo
cabia inteiro no meu bolso.
Mas isso era no tempo em que eu sabia tudo.

Depois, chegaram as dúvidas,
que me tomaram todo,
como naqueles dias em que a chuva
se insinua e nos encharca a roupa,
colada ao corpo.

Por fim, subitamente,
em certa curva da estrada,
tudo ficou diferente
e dei por mim sem saber nada.

(2005)

quarta-feira, maio 18, 2005

Fala-me de ti

Agora fala-me de ti.
Diz-me aquilo que eu não vi
da tua vida singular.
Conta-me o dia e o lugar
em que nasceste
e o tempo que viveste
antes de eu te encontrar.

Relata-me os pormenores
mais fundos que puderes:
não só as alegrias, mas também as dores
que sentiste até me veres.

Agora fala-me de ti
como se eu estivesse aqui.

(2005)

segunda-feira, maio 16, 2005

Noite

Quando vier a noite sem manhã,
que me está desde sempre destinada
(e ela não tarda, ela não tarda),
ver-se-á que não foi vã
esta infrene caminhada.

Em cada Primavera,
darão flor as roseiras que plantei
com estas mãos, que já não serão nada.
E crescerá a hera,
que pouco a pouco deixei
nos muros entrelaçada.

E o mar, que longamente namorei
e sempre trouxe na carteira
entre tostões e cartões,
lembrará, certamente, que o amei,
preso da bebedeira
que me ateou as ilusões.

(2005)

sexta-feira, maio 13, 2005

(Des)conhecimento

Conheço as ruas todas do seu corpo
e os secretos recantos de que é feito,
as rugas que despontam no seu rosto
e os vales verdejantes do seu peito.

Conheço os rios que nascem dos seus olhos
e o fogo que irradia dos seus lábios,
as largas avenidas que a percorrem,
entre poços, jardins, fontes e pátios.

Conheço os dedos finos com que, atenta,
sempre me acaricia e me dá calma,
quando esta dor terrível me atormenta:
jamais conhecerei a sua alma.

(2005)

quarta-feira, maio 11, 2005

Sofrimento

À memória da Teresa

Como quem sobre os ombros carregasse
todas as dores do mundo e lhe sobrasse
força para sofrer ainda mais.

Como quem à feroz adversidade
respondesse com a serenidade
de nos saber a todos desiguais.

(2005)

domingo, maio 08, 2005

O sentido

Se não souberes de mim, procura-me entre as árvores,
nos campos desolados do meu país distante.
É lá que me passeio, perdido de mim mesmo,
na incessante busca de um caminho.

Se não souberes de mim, procura-me nas ondas
que rebentam nas praias dos meus verdes anos.
É lá que, mergulhando no futuro,
vagueio, entre confuso e indeciso.

Se não souberes de mim, procura-me nos livros
que um dia li, mas logo abandonei,
por não me darem o sentido
da vida, que em vão busquei.

(2005)

quarta-feira, maio 04, 2005

Ilusão

Se for noite, direi que és lua cheia,
se for dia, direi que és manhã clara,
suspenso desse olhar que me incendeia
e alimenta a alma.

Se for jardim, direi que és rosa brava,
trepadeira, buganvília,
preso desse sorriso onde perpassa
uma sombra de ironia.

E, se for multidão, direi que somos nós
iludindo a angústia de estar sós.

(2005)

segunda-feira, maio 02, 2005

In illo tempore

Não sei de alguém que tenha sido mais feliz
do que nós fomos, minha amiga.
Naqueles tempos de abundância,
os rios corriam fáceis para o mar
e cada esquina era uma fonte de água fresca.

A casa tinha longos corredores
e nos quartos as arcas rescendiam
a alecrim, ervas amargas e tomilho.
Tu dormias, serena e descuidada,
na manhã dos meus sonhos deslumbrados.

E o sol da tarde anunciava
a noite incendiada nos lençóis
que vestiam a nossa impaciência.

Não sei de tempos mais felizes, minha amiga.

(2005)