segunda-feira, fevereiro 27, 2006

Quadra (im)popular

Contra todas as loas,
eis a verdade prática:
os poetas são as pessoas
que mais sabem de matemática.

("Destino do Mar", 1991)

sexta-feira, fevereiro 24, 2006

A noite

A noite não tem modos nem emenda,
chega a qualquer lugar a qualquer hora,
e como um pesadelo que demora
me atormenta.

Impenitente, a noite é a medida
dos medos todos da vida,
mas nela é que me perco e me procuro
sem temer o futuro.

(2006)

quarta-feira, fevereiro 22, 2006

O ano de 1978

Só guardarei deste ano os nomes próprios:
o Ruy Belo, o Nemésio, o Jorge de Sena.
O resto não me importa,
não entra no meu poema.

Só guardarei deste ano esses três nomes,
de uma luz impossível, cegadora.
O resto foi a fome,
o deserto, a penhora.

Só guardarei deste ano a farta herança
de futuro, que eles são.
A grande esperança
que me dão.

O resto é acidente,
o resto é nada,
minha pátria doente,
minha pátria adiada.

("Destino do Mar", 1991)

segunda-feira, fevereiro 20, 2006

Ainda as palavras

Há palavras com pássaros por dentro,
onde é difícil circular:
têm patas e asas, muitas penas.
É a medo que invento
a força de lhes pegar
com as minhas mãos pequenas.

Há palavras sulcadas de navios,
onde é difícil viajar:
faltam bandeiras e velas.
É por entre calafrios
que me lanço a navegar
no mar eriçado delas.

Há palavras panóplias de mil armas,
pistolas velhas e espadas.
Meu prazer é desarmá-las
ante as tias alarmadas.

Há palavras quais facas espanholas,
brilham no gume afiado,
navalhas de ponta e mola
para o destino aprazado.
Mas destas disse-me a escola
que lhes passasse de lado.

("A Porta da Europa", 1978)

sábado, fevereiro 18, 2006

Palavras

As palavras sucumbem ao vazio
da própria pequenez.
Nenhum cais tem a forma do navio,
nenhum navio a forma das marés.

("Lucro Lírico", 1973)

quinta-feira, fevereiro 16, 2006

Presença

Já não estás onde estavas, já não estás
onde sempre te vi.
Mas, olhando o lugar, sinto-te aí
e recupero a paz.

O que conta não é o que se sabe,
tão-pouco o que se vê.
O que conta é aquilo que não cabe
dentro dos olhos, mas se crê.

("Destino do Mar", 1991)

terça-feira, fevereiro 14, 2006

Sentido

Não há terrenos conquistados,
tudo é incerto e movediço.
Onde quer que tu estejas, estás cercado
de mil e um compromissos.

O que tens por seguro e garantido
é apenas volátil e perdido
entre a mentira e a verdade.

É que nada faz sentido
fora do amor e da amizade.

(2006)

sexta-feira, fevereiro 10, 2006

Sem medo

Quando tudo me pesa, quando a noite
nunca mais é manhã e a frieza
me entra no quarto e vem colar-se
à minha pele, aos músculos, aos ossos,

quando me sinto à beira do naufrágio
e não há salva-vidas, bóia, bote
à vista a que me agarrar,

quando tropeço e já me assalta o medo
de nunca mais me levantar,

eis que te vejo e chega a madrugada,
não há mais frio nem me é adverso o mar
e sigo em frente sem temer mais nada.

(2006)

terça-feira, fevereiro 07, 2006

Sinfonia

Enternece-me a música
que desprendem os teus olhos,
melodia única,
da família dos sonhos.

Misteriosas paisagens
espraiam no teu rosto
o som líquido das vagas
confluindo no porto.

Não sei de outra sinfonia
para a perfeição dos dias.

(2006)

quinta-feira, fevereiro 02, 2006

Indiferença

Não te amo nem te odeio,
disparou ela a meio
da conversa, como quem
lhe acertasse em cheio
onde nunca ninguém.

Mas haverá quem se convença
de ódio maior que a indiferença?

(2006)