segunda-feira, janeiro 31, 2005

Ternura

Ver-te e dizer
canção, país, abrigo
e, depois das palavras esgotadas,
apenas estar contigo
e não querer mais nada.

Correr de mãos abertas
a tua pele nua, viajar
pelas ruas longuíssimas, desertas
do teu corpo, cidade circular.

Beber-te a madrugada que, da boca
jorrando, me incendeia de loucura
e não temer que a vida seja pouca
para morrer de ternura.

("Lucro Lírico", 1973)

sexta-feira, janeiro 28, 2005

Agora

Não é tarde nem cedo,
é agora.
Como quem de repente perde o medo
e desarvora.

Entre o sim e o não
vai o risco do fósforo, o instante
da decisão.
O resto é redundante.

O que importa, afinal, é afrontar
as alamedas sonolentas
da longa noite perdida.
E, no lugar
das aves agoirentas,
reinventar a vida.

("Destino do Mar", 1991)

quinta-feira, janeiro 27, 2005

Fogueira

Todo por dentro ardendo como se
um incêndio interior, um fogo lento
locomovesse o corpo que
me coube em sorte e sustento.

Uma fogueira circulante,
feita de veias, nervos e tendões,
mas sem vacilar perante
mil e uma solidões.

("Destino do Mar", 1991)

quarta-feira, janeiro 26, 2005

Frenesim

Este doce frenesim
de querer e não querer,
de não fazer o que quero,
de não querer o que faço
é sina que pela vida
me persegue a cada passo.

("Os Poemas da Verdade", 1963)

terça-feira, janeiro 25, 2005

A cidade

A cidade passeia no rosto de um homem,
põe o seu corpo nu a vestir-lhe a pele,
desenha-lhe um rio, mas os barcos não correm
na água que nasce do silêncio dele.

Um homem estrangula o frio da cidade,
o seu corpo a possui, o seu corpo incendeia.
Vai calado e só, numa fúria que há-de
espraiar-se apenas no oiro da areia.

Cidade de portas abertas ao medo,
um homem percorre o seu corpo e pergunta
como o tempo achou lugar para ter
tanto tempo muda tanta gente junta.

("Voz Suspensa", 1970)

segunda-feira, janeiro 24, 2005

O frio

O frio abriu corredores
quando passou entre os cabelos
de nós dois.
Foi na noite precisa em que soubemos
que era provável não vivermos
outra noite depois.

No quarto incendiado um vidro da janela
subitamente se partira,
batido pelo vento.
E nós éramos nus, vestidos só daquela
antiquíssima ira
que desconhece o desalento.

("Voz Suspensa", 1970)

sexta-feira, janeiro 21, 2005

Espanto

De nós apenas sabemos
o espanto de estarmos vivos.
Tudo o mais é de somenos
aos nossos cinco sentidos.

Atravessámos noites, navegámos
por mares e rios que inventámos
entre o pavor e a alegria.

E agora tudo o que queremos
é deter nas mãos os remos
que levam da noite ao dia.

("Voz Suspensa", 1970)

quinta-feira, janeiro 20, 2005

Mais

Adormeço
sob a certeza do teu braço
pesando no meu peito
e a tua mão pequena
ajustada ao meu rosto.

A certeza de saber
o teu corpo dormindo no meu corpo
e o teu silêncio velando o meu silêncio.

Adormeço
e à paz das coisas obedeço
por te saber comigo.

E no entanto, amor,
eis que me lanço em busca
de algo mais que nem sei.

("Voz Suspensa", 1970)

quarta-feira, janeiro 19, 2005

Quadra (im)popular

Contra todas as loas,
eis a verdade prática:
os poetas são as pessoas
que mais sabem de matemática.

("Destino do Mar", 1991)

terça-feira, janeiro 18, 2005

Aflição

Apenas aflição e nada mais.
Um arrepio correndo o corpo todo.
Estar aflito é o meu modo
de estar com os demais.

Aflito. Como se um rio,
de súbito saído do seu leito,
afogasse o navio
do corpo a que estou sujeito.

Não temas. É aflito que eu escrevo.
Aflito realizo
ser daquilo que vejo o amo e o servo.

Tudo o mais que preciso
é saber que me devo
um permanente aviso.

("Lucro Lírico", 1973)

segunda-feira, janeiro 17, 2005

Igual

Que sabes tu de mim? Não sabes, por exemplo,
que me acerco das árvores e lhes respiro as folhas,
rezando como num templo
a ladainha do meu livro de horas.

Que sabes tu de mim? Não sabes, com certeza,
que nas veredas do meu país perdido
me atordoo, buscando sem destino
o fruto dessa reza.

Mas que importa o que sabes? Nada ou tudo
me é igual, pois contigo tenho o mundo.

(2005)

sexta-feira, janeiro 14, 2005

Medo

Digo que tenho medo
e, no entanto, sigo.
Acusador, um dedo
põe-me em guerra comigo.

Fujo do que me chama,
o que me quer recuso.
Nada do que possuo é meu na cama
de que é meu só o uso.

É por dentro de mim que à desfilada
correm cavalos loucos de secura.
Noite que não acorda a madrugada,
desvendo-me à procura
de mim mesmo - ou de nada.

("A Porta da Europa", 1978)

quinta-feira, janeiro 13, 2005

Relatório & Contas

O deve e o haver,
o saldo positivo,
mas sobretudo o dever
que um homem tem de estar vivo.

O balanço, o avanço
de uma conta calada
e, depois, o descanso
de não dizer nada.

O conselho agradece,
o conselho confia,
mas não esquece
que amanhã também é dia.

A reserva no fundo
do fundo de reserva
está atenta ao mundo,
embora em conserva.

Relatamos a vida,
contamos a hora:
há uma letra vencida
que fica de fora.

("Lucro Lírico", 1973)

quarta-feira, janeiro 12, 2005

Retrato (2)

Um leito de ternura ao qual a foz
se nega como a um rio que resiste,
assim me cumpro na voz
da minha duplicidade:
pássaro preso que insiste
na tecla da liberdade.

("Lucro Lírico", 1973)

terça-feira, janeiro 11, 2005

Retrato

Um poço de ternura.
Cisterna que decanta
o líquido pastoso da loucura
que de súbito em mim se eleva e canta.

Reserva frágil de emoções.
Um forno em que se coze
a sede insaciável que me impõe
que viva e ouse.

Floresta agora, logo após deserto.
Árida aresta de tudo o que me chama.
Não sabendo de nada, apenas certo
da certeza invencível de quem ama.

Cantil de raiva que destila medo,
gato de unhas e patas aguçadas,
rasgo o pano da noite e com um dedo
acuso as madrugadas.

("Lucro Lírico", 1973)

segunda-feira, janeiro 10, 2005

Figuras

Espectrais, tinham o ar de quem saíra,
há momentos, de um quadro, uma gravura.
Fitando-as, fiquei certo: jamais vira
gente assim, tão perdida na lonjura.

Por temer que a visão fosse mentira,
percorri, num olhar, cada figura:
eram mesmo reais, como intuira
pelos traços da antiga formosura.

Mas eis que, em lhes tocando, recuaram,
como se a minha mão impura fosse
perturbar-lhes a paz donde chegaram.

Só então percebi que o tempo as trouxe
para a simples lição que me ensinaram:
quem quis o impossível condenou-se.

("Destino do Mar", 1991)

sexta-feira, janeiro 07, 2005

Resistir

Para o que der e vier,
sigo a tua legenda: resistir.
Mas já me assalta a dor de não saber
se hei-de ficar, se hei-de partir.

Nada do que sonhámos se cumpriu
e o tempo, animal veloz,
vai deixar o vazio
onde devíamos ser nós.

É muito fácil desenhar
o destino à medida.
Difícil é conformar
o desenho e a vida.

("Destino do Mar", 1991)

quinta-feira, janeiro 06, 2005

Raízes

Das tuas mãos provêm as raízes
que florescem nas ruas do meu corpo.
Só por elas aceito as cicatrizes
que deixas no meu rosto.

Nos teus olhos viajam os navios
de todas as marés que eu conheci.
Ao mar da tua boca dão os rios
que me levam a ti.

("Lucro Lírico", 1973)

quarta-feira, janeiro 05, 2005

Despedida

Tento fixar-te o rosto no momento
da veloz despedida.
Mas logo um movimento
da câmara, importuno e violento,
nos desprograma a vida.

("Destino do Mar", 1991)

terça-feira, janeiro 04, 2005

Canto

Fala a fala finíssima das folhas
e nos jardins suspensos dos seus olhos
aves doidas de sol cantam o canto
perfumado dos pátios e dos poços.

("Lucro Lírico", 1973)

segunda-feira, janeiro 03, 2005

Mal sem remédio

Morre-se de medo,
morre-se de tédio,
mas do que se morre mais
é de falta de amor,
mal sem remédio
que nos faz desiguais.

Já morremos mil vezes,
já morremos
de mil mortes,
nem todas naturais,
e sempre renascemos
para amar um pouco mais.

Até que um dia a solidão,
daninha mãe das decisões finais,
nos proíba o coração
de bater mais.

("Destino do Mar", 1991)

domingo, janeiro 02, 2005

Longe

Olho em redor e todos estão longe,
os vultos diluídos na paisagem,
e eu, que sempre busquei o que me foge,
recomeço a viagem.

("Lucro Lírico", 1973)