sexta-feira, junho 29, 2007

Haja saúde









Acrílico sobre tela
Torquato da Luz, 2007

Tropeça a cada passo no passado,
como se um dedo acusador o esperasse
aqui e além, ali e em todo o lado.
Não é, porém, coisa que o mace.
Ele quer lá saber se foi errado
o que fez ou não fez: "Tirei o passe
para a vida e safei-me como pude.
O resto não me interessa, haja saúde".

terça-feira, junho 26, 2007

História















Jardim da Estrela
Foto TL

Daqui por um ano,
quando for outra vez o tempo das cerejas,
hei-de contar-te novamente a história
daquele duo maravilhoso
com que se encheu de cores a tua infância.

Sei bem que já não és criança
e não posso adormecer-te
sob o encantamento das tropelias
do Tejo e do Farrusco, cão e gato,
mais o mágico cavalinho de madeira.

Mas, daqui por um ano,
quando for outra vez o tempo das cerejas,
hei-de contar-te novamente a história
para reencontrar nos teus olhos
o deslumbramento com que a ouvias.

sexta-feira, junho 22, 2007

Sentido















Jardim da Estrela
Foto TL

O sentido de tudo
é nada ter sentido.

Tu podes ser herói todos os dias,
praticando as maiores acrobacias.
Ou evitar fazer ruído
para não afligir as tias.

Podes, sei lá, andar na rua
como se fosse apenas tua.
Ou aplicar um sinapismo
sobre a pele do abismo,
tal um cão ladrando à lua.

Mas, por mais que faças, não
hás-de achar uma razão.

terça-feira, junho 19, 2007

Correntes












Foto TL

Deixei-me aprisionar pelas correntes
marítimas que tem o teu olhar.
São mais fortes que tudo o que pressentes
que de algum modo me pode alegrar.

Um guerrilheiro armado até aos dentes,
terrorista sem causa nem lugar,
eis que transporto às costas entrementes
as ondas que se soltam do teu mar.

Mas não me queixo, não me vou queixar
das gaivotas, das algas, das marés
que preenchem o curso dos teus dias

e me prendem e enlaçam no colar
que se desenha à volta de quem és,
sobre a praia das nossas alegrias.

sexta-feira, junho 15, 2007

Nítida memória















Terreiro do Paço
Foto TL

Estás aqui ao meu lado. Guardo nítida
a memória do teu rosto jovem.
Manténs nos olhos a luz que me atraíu
no dia em que te vi pela primeira vez.
E estas mãos que te acariciam
são as mesmas que nervosamente
se perdiam nas ruas do teu corpo.
Sei de cor o sabor da tua boca
e o perfume dos recantos
cujos mistérios me revelaste.

Tudo, afinal, é simples e exacto
quando o amor resiste ao tempo.

terça-feira, junho 12, 2007

Vertigem













Travessa
de Stª Teresa
Foto TL

Chegaste quando já desesperava
de te ver chegar.
Há mil anos sentado à soleira,
todos os sons, todos os cheiros,
ainda os mais longínquos, os mais ténues,
me falavam de ti.

Era o ronco dos motores,
o marulho das ondas,
o silvo dos navios,
o apito das traineiras,
o pio cruzado das gaivotas,
o cantochão das cigarras.

Era o odor dos frutos
derreando as árvores
e o estalido dos ramos secos
sucumbindo ao calor da tarde.

Era tudo pronto, enfim,
para a vertigem
de eu gostar de ti.

domingo, junho 10, 2007

Portugal








Foto TL

País estilhaçado, estraçalhado,
estiraçado entre o medo e a maresia,
país estalactite, estalagmite,
país de bruços que nos braços
carrega sombras e cansaços.

País dilacerado, lacerado,
encalacrado até aos gorgomilos,
país adiamento, aditamento,
país padrasto dos seus próprios filhos.

País que eu amo, que desamo
para logo a seguir amar de novo,
país que tem o nome por que chamo
aquilo que estremeço até ao osso.

sexta-feira, junho 08, 2007

Aluguer













Acrílico sobre tela
Torquato da Luz, 2007

Nenhuma coisa temos, nada é nosso,
tudo nos foi cedido de aluguer
ou simplesmente emprestado.
A toda a hora nos aperta o pescoço
a dor de ter de devolver
o que tomámos fiado.

Alugámos o tempo para a vida
e nem sequer percebemos
que no fragor da corrida
as dívidas que fazemos
são as dúvidas que temos.

segunda-feira, junho 04, 2007

O medo









Acrílico sobre tela
Torquato da Luz, 2007

O medo tem muitos rostos,
qual deles o mais assustador.
É o medo da morte, o medo da dor,
o medo da noite e do sol-posto,
o medo do frio e do calor.

O medo da polícia e do ladrão,
o medo do sim, o medo do não,
o medo da sombra, o medo da luz,
o medo da rua e da escuridão
e ainda o medo que traduz
esta palavra: solidão.

Mas o medo que a esmo
corrói mais que nenhum
é o que cada um
tem de si mesmo.