quarta-feira, outubro 29, 2008

Palavras secretas





















Barlavento algarvio / Foto TL, 2007

Repete-me ao ouvido as mais secretas
palavras que algum dia te ensinei
e depressa fechaste nas gavetas
da memória do tempo em que te amei

e por ti fui amado, aqueles anos
longínquos mas ainda iluminados
pelo fogo que, sobre os desenganos,
nos conserva de pé e acordados.

Repete-me ao ouvido essas palavras,
feitas de espuma mas também de espanto,
que eu te dizia e te diziam tanto

que as retinhas a todas e gravavas,
na esperança deste dia em que por fim
eu tas peço de volta para mim.

domingo, outubro 26, 2008

Dói-me o país











Assembleia da República / Foto TL, 2008

Dói-me o país: ele é minha pertença
como eu também lhe pertenço.
E tenho o direito, penso
(ninguém me desconvença),
de pedir contas a quem o pôs assim,
que mais parece à beira do fim.

Dói-me o país: ele é parte de mim
como eu também sou parte dele
- e temos ambos a mesma pele.

Dói-me o país, como se um mal ruim
nos tivesse roubado aos dois
a esperança de haver depois.

E, no entanto, ainda creio que sim,
que há-de chegar o momento
de pôr termo ao sofrimento.

quarta-feira, outubro 22, 2008

Amar Lisboa
















Pormenor de fachada, Rua dos Bacalhoeiros (Lisboa)/Foto TL, 2008

Como é possível não te amar, Lisboa,
com esta luz do princípio do mundo
mais o Tejo que espreita lá do fundo
de uma rua qualquer da Madragoa?

Como é possível não te amar, Lisboa,
se tens a Mouraria e tens Alfama
e em todos os recantos se derrama
um sol que me fascina e me atordoa?

Como é possível não te amar, Lisboa,
se tens o dom de seduzir e sabes
como prender de vez quem seduziste,

entretanto guardando, grata e boa,
a memória do fado em que não cabes,
jovem demais que és para seres triste?

segunda-feira, outubro 20, 2008

O outro lado













Arco de Jesus, Campo das Cebolas (Lisboa), Foto TL, 2008
Não penses que tudo é simples e claro
como imaginas e por vezes dizes.
Certos dias são noites e não raro
há rostos que aparentam ser felizes
mas escondem um fundo sofrimento
que não suspeitas nem por um momento.

A vida é como é e não adianta
fingir que é outra coisa mais amena.
Mas, por detrás da máscara, a gangrena
da dor que não se vê chega a ser tanta
que o mais fácil decerto é ignorar
o outro lado e assim continuar.

quinta-feira, outubro 16, 2008

Imaginação














Acrílico
sobre tela
TL, 2008

Pergunto-me às vezes por que motivo os teus olhos
ainda amanhecem cheios da antiga claridade
da praia da nossa infância, esse lugar há muito perdido
onde escavámos o tempo à descoberta dos mistérios
mais secretos, que em parte ficaram sem resposta.
E a explicação que encontro para o fulgor
do teu olhar à luz da madrugada
está em lembrar-me de que nasceste da espuma,
caminhaste sobre as ondas sem milagre
e aportaste à cama da minha imaginação.

segunda-feira, outubro 13, 2008

Vertigens



















Arco das Portas do Mar, Rua dos Bacalhoeiros, Foto TL, 2008
Gostavas de ter as certezas de quem desconhece a dúvida
e pensa que tudo é sempre linear e exacto
sem lugar para o erro ou o engano,
mas a verdade é que não tens nada disso
e pisas a todo o tempo uma corda frágil,
esticada sobre um rio cujas margens
se chamam tristeza e alegria,
tu que sofres de vertigens desde a infância.
Mas não te importes, tudo irá compor-se
e há-de vir um dia em que as margens se juntarão
e não mais terás medo das alturas.

quinta-feira, outubro 09, 2008

Agenda











Foto TL, 2008

Houve tempo em que a agenda
se enchia de notas de aniversários,
mas pouco a pouco, por motivos vários,
um nome apagado hoje, amanhã uma emenda,
foi ficando despovoada.
E agora, não é por nada,
mas a verdade é que, por vezes,
passam dias, semanas, talvez meses
seguidos sem registo de um evento.
E não vale ensaiar qualquer lamento,
pois na recta final a visão do deserto
é o que tens de mais certo.

segunda-feira, outubro 06, 2008

Dentro do olhar


















Foto TL, 2007
É dentro do olhar que principia
essa penumbra que, expulsando o dia,
pouco a pouco enevoa tudo em volta
e onde era luz semeia escuridão.
E é dentro do olhar que a solidão
origina a tristeza e a revolta.
Mas é também por dentro do olhar
que a manhã se ergue nua e anda à solta
e brilha intenso o verde-azul do mar.

quinta-feira, outubro 02, 2008

A solução















Outro pátio em Alfama/Foto TL, 2008
Nunca sigas apenas a razão,
escuta também o coração.
É por entre o que pensas e o que sentes
que acharás a solução
e nunca, por mais que tentes,
em qualquer dos extremos, não.