segunda-feira, janeiro 31, 2011

Lisboa

Ribeira das Naus
Nada sabes de mim e no entanto eu amo-te
pássaro inquieto e frágil que descansas
sob a janela do meu tédio.
Podia debruçar-me e súbito falar-te
mas ignoro as palavras necessárias:
estou aqui de passagem e não trago
outra bagagem que não seja o espanto
incrédulo de amar-te.
E por mais que te afastes e eu fique apenas
a contas com a dor do abandono
sei que não vai ser fácil esquecer-te
e ao cântico feliz de fim de tarde
da tua comunhão com as gaivotas.

quinta-feira, janeiro 27, 2011

Overdose

Do Jardim das Janelas Verdes
Toda a gente, mais dia menos dia,
acaba por morrer de qualquer mal.
Por mim, prefiro a morte natural
de overdose de poesia,
mas que seja uma coisa fulminante,
nada mais que um instante.
Não me falem, portanto, em morte lenta,
que é tema entediante
e já não se aguenta.

segunda-feira, janeiro 24, 2011

A voz do vento

Acrílico sobre tela, TL, 2008

Devíamos ouvir a voz do vento
quando sopra nas frinchas da janela
e tentar perceber no seu lamento
a mensagem com que nos interpela

e não é só um silvo, um sentimento
de dor, mas certamente a mais singela
das expressões que dizem o momento
em que a nudez do tempo se desvela.

Devíamos ouvir o vento e ver
no seu gemido o ardor com que nos chama
para a luta lá fora em campo aberto

e sem ter medo, venha o que vier,
remar contra a maré de lixo e lama
que nos espreita cada vez mais perto.

quinta-feira, janeiro 20, 2011

Talvez

Rua de Santa Justa
Talvez o fim não seja o fim e ainda
haja mais qualquer coisa além do fim.
Talvez ao fim da noite que não finda
haja um dia sorrindo para mim.

segunda-feira, janeiro 17, 2011

Incerteza

Jardim do Príncipe Real

Estamos cercados de incerteza
por todos os lados.
É ela que, a dormir ou acordados,
seja na cama ou à mesa,
nos alimenta de medos,
entre riscos e segredos.
E, se às vezes é violenta
na forma como nos atormenta,
a verdade é que também
tem um tempero de sal e de pimenta
que não raro nos convém.

quinta-feira, janeiro 13, 2011

Intimidade

Da estação do Rossio

Ninguém é feliz a sós.
Qualquer de nós
só no outro se completa
e não há porta secreta
para a felicidade
que não inclua a partilha
da intimidade.
A quem se quer uma ilha
isolada no meio do mar
nada mais que a tempestade
lhe restará amar.

segunda-feira, janeiro 10, 2011

Exílio

O gladíolo no seu esplendor
Somos todos exilados
de paraísos inventados
a que não queremos regressar,
mas também foragidos
donde nos queiram submetidos
à prepotência do lugar.

Entre exílio e insubmissão
cada um vagueia a esmo
na ilusão
de saber de si mesmo.

quinta-feira, janeiro 06, 2011

Rosto a rosto

Rua de São Bento
Olhemo-nos rosto a rosto
e sem demoras troquemos
sobre as rugas do tempo e do desgosto
as palavras que nos devemos.
Palavras arrancadas do mais fundo
da alma, onde as escondemos
tempo demais, como se o mundo
pudesse esperar que nunca fossem ditas.
Palavras feitas de horas infinitas
de silêncio forçado
e enfim libertas do seu longo exílio
por entre a inocência e o pecado.
Palavras que nos sejam um auxílio
para os dias sombrios à nossa espera
e que transportem sol e primavera.
Palavras como espuma e maresia,
temperadas de sal e de calor,
que nos matem a sede de poesia
e a fome de amor.

segunda-feira, janeiro 03, 2011

Armazém da memória

Cresce o gladíolo na varanda

Como se fosse um armazém,
a memória retém
o que algum dia se viveu
mas também o que jamais
extravasou os umbrais
do sonho e só aconteceu
na imaginação.
Em tamanha confusão
entre o vivido e o sonhado
a gente às vezes nem sabe
o que em bom rigor lhe cabe
meter no rol do passado.
Pois não raro, bem ou mal,
é mais verdade o imaginado
do que o real.