quinta-feira, abril 28, 2005

Incêndio

A cidade é um corpo desnudado,
que se entrega sem reservas.
Ao percorrê-lo, as minhas mãos incendeiam
as largas avenidas
que se formam de repente
para morrerem um quarteirão adiante.

Em cada casa uma fogueira tem o nome de um homem
e nas ruas florescem mulheres,
que dão fruto no esplendor da madrugada.

Crianças desenham o voo dos pássaros
entre árvores esguias
e luminosos pátios
onde hei-de inventar-me um dia.

(2005)

terça-feira, abril 26, 2005

Pesadelo

Atravessas a vida como quem,
ao fim da tarde, toma uma bebida.
Tudo te é fácil, nada tem
definido um lugar na tua vida.

Prevendo a solidão que me darias,
tentei em vão fugir de ti.
Mas, afinal, o mais que consegui
foi ver-te renascer todos os dias.

domingo, abril 24, 2005

Ave marinha

O voo do teu olhar é o prenúncio
do silvo de um navio. Tu tens a chave
do bailado dos peixes no abismo
que lentamente fomos construindo.

Revivo a limpidez do teu sorriso,
ave marinha planando
sobre a tarde de Verão
em que te vi pela primeira vez.

Até que se fez noite e a maré
nos jogou contra os rochedos.

(2005)

quinta-feira, abril 21, 2005

Signo

Sigo o signo do teu nome,
que me consigna o trilho a percorrer.
Tu vives para lá do sofrimento,
da tempestade e da fome,
que vou ter de vencer
para chegar à praia em que te invento.

(2005)

terça-feira, abril 19, 2005

O circo

De vez em quando havia circo na aldeia.
Os saltimbancos chegavam numa tarde qualquer
e sem aviso prévio armavam o trapézio
no largo ao lado da igreja.
Depois, percorriam as ruas com o bombo,
anunciando a festa.

Nós, os moços, ficávamos eufóricos
com aquela algazarra
e as roupas coloridas dos palhaços.

Nessas alturas, minha mãe contava sempre
a história da trapezista que um dia caíra lá de cima,
ficando, entre a vida e a morte,
ao cuidado da aldeia, que logo a adoptara
e a tratou como se fosse um dos seus.

De todos os circos que veria mais tarde,
jamais algum me deixou deslumbrado
como esses que, de vez em quando,
chegavam à minha aldeia.

(2005)

sábado, abril 16, 2005

O quintal

O quintal tinha árvores de fruto,
várias figueiras, uma ou outra ameixeira,
cepas por todo o lado,
mas principalmente flores, muitas flores.

Foi esse o labirinto em que brincámos
ao esconde-esconde e outros jogos
que fizeram feliz a nossa infância.

E agora do que fomos resta apenas
o cansaço implacável da distância.

(2005)

quarta-feira, abril 13, 2005

Pode ser

Pode ser que amanhã seja outro dia,
com sol na eira e chuva no nabal.
Pode ser que, por graça da poesia,
seja de novo dia de Natal.

Pode ser que regresses e me digas
a palavra precisa, essencial,
que, eliminando todas as intrigas,
nos reconduza ao estado original.

Pode ser que amanhã seja outro dia
e voltemos ao tempo da alegria.

(2005)

segunda-feira, abril 11, 2005

A pesca

Era o tempo das cheias.
A ribeira transbordava e a várzea
transformava-se num charco,
durante largos dias.

A nossa casa ficava do outro lado da estrada,
a caminho da praia.
E, embora fosse permanente o medo
de que a água alagasse tudo,
o que importava era a festa
de pescarmos as laranjas
que vinham na corrente.

(2005)

sexta-feira, abril 08, 2005

Voo cego

Não sei nada de nada, nunca soube.
Sou apenas um pássaro ferido,
a voar sem sentido.

Tudo o que me ensinaram jamais coube
na mochila da vida que carrego,
qual fardo, num voo cego.

(2005)

quarta-feira, abril 06, 2005

Tudo

Tudo o que outrora soube e já esqueci:
os nomes, coisas, datas e lugares.
Todas as horas que passei sem ti,
na esperança de algum dia me encontrares.
Todas as noites em que adormeci
na ruidosa solidão dos bares.

Tudo o que sempre quis e não achei
ou, tendo achado, logo deitei fora.
Todos os sonhos que uma vez sonhei
e dos quais, afinal, me fui embora.

Tudo o que tive e nunca mais terei.

(2005)

segunda-feira, abril 04, 2005

Raiz

Fui por amor e tive solidão,
busquei apoio e só me deste ausência,
como quem no lugar do coração,
feito apenas de lustre e aparência,
transporta a sua própria maldição.

Por isso, em cada dia, em cada hora,
te prometo esquecer e deitar fora.

Mas eis que tudo sempre recomeça,
meu amor de raiz, minha promessa.

(2005)

sábado, abril 02, 2005

A chuva

Ouço lá fora a chuva, finalmente a chuva,
e recordo aqueles tempos, já distantes, da infância,
em que era natural que, no Verão, o sol queimasse
e o Inverno fosse frio.

Depois, tudo mudou ou parece que mudou
e os dias estivais renderam-se à invernia,
do mesmo modo que a límpida alegria
do menino que fui cedeu ao que hoje sou.

(2005)