sexta-feira, março 31, 2006

31 de Março

Para a Maria João

É o dia entre todos luminoso
em que de repente as pedras
se transformaram em espigas.

O dia em que as palavras foram escassas
para dizer do coração
que me abundava no peito.

O dia em que as coisas todas
das simples às mais complexas
ganharam outro sentido.

O dia em que à beira dos caminhos
floresceram estrelas.

O dia em que tu nasceste.

(2006)

segunda-feira, março 27, 2006

Lisboa

Nada sabes de mim
e, no entanto, eu amo-te,
pássaro inquieto e frágil que descansas
na janela do meu tédio.
Nada sabes de mim
e, no entanto, eu amo-te.

Podia debruçar-me e súbito falar-te,
mas ignoro as palavras necessárias.
Estou aqui de passagem e não trago
outra bagagem que não seja o espanto
incrédulo de amar-te.

Admito que é possível esquecer-te,
quando no cais faltarem as gaivotas
e o seu canto comum ao fim da tarde.
Mas eu estarei então demasiado longe
e apenas rodeado da lembrança,
sob águas profundíssimas e quietas.

("Lucro Lírico", 1973)

quinta-feira, março 23, 2006

Solidão

Quem tem a vida preenchida
não atende o telefone ao primeiro toque
nem abre imediatamente
o correio que acabou de receber.
Mas quem só conhece o vazio dos dias
aguarda junto do telefone
a chamada que nunca chegará
e cola os olhos à vidraça
na esperança de que o carteiro
lhe traga a carta que jamais foi escrita.

(2006)

terça-feira, março 21, 2006

A Poesia

(No dia da dita)

A poesia não é um código secreto
acessível apenas a alguns
nem uma sucessão de palavras
indecifrável até pelo autor.

A poesia é uma tentativa
de entender a vida.

segunda-feira, março 20, 2006

Raizes

Das tuas mãos provêm as raizes
que florescem nas ruas do meu corpo.
Só por elas aceito as cicatrizes
que deixas no meu rosto.

Nos teus olhos viajam os navios
de todas as marés que eu conheci.
Ao mar da tua boca dão os rios
que me levam a ti.

("Lucro Lírico", 1973)

sexta-feira, março 17, 2006

Imagens

Não é o mesmo, não, não é igual.
Dir-se-á que tanto faz, que não importa,
mas não é assim.

Quem viu a besta à solta
pelos campos desolados
não pode conformar-se
ou fazer de conta que nada aconteceu.

As imagens da morte acordam-nos,
em recorrentes pesadelos,
e há sombras a cada porta
que vêm reprovar-nos este tempo.

O horror acomoda-se
sobre o gás e as cinzas.

Não é o mesmo, não, não é igual.
Dir-se-á que tanto faz, que não importa,
mas não é assim.

(2006)

quarta-feira, março 15, 2006

Canto

Fala a fala finíssima das folhas
e nos jardins suspensos dos seus olhos
aves doidas de sol cantam o canto
perfumado dos pátios e dos poços.

("Lucro Lírico", 1973)

segunda-feira, março 13, 2006

Mal sem remédio

Morre-se de medo, morre-se de tédio,
mas do que se morre mais
é de falta de amor, mal sem remédio
que nos faz desiguais.

Já morremos mil vezes, já morremos
de mil mortes, nem todas naturais,
e sempre renascemos
para amar um pouco mais.

Até que um dia a solidão,
daninha mãe das decisões finais,
nos proíba o coração
de bater mais.

("Destino do Mar", 1991)

sábado, março 11, 2006

Despedida

Tento fixar-te o rosto no momento
da veloz despedida.
Mas logo um movimento
da câmara, importuno e violento,
me reprograma a vida.

("Destino do Mar", 1991)

quinta-feira, março 09, 2006

Para sempre

Houve tempo em que me chocava
o sussurro dos medíocres.
Mas depois reparei que a mediocridade
afinal governa o mundo.

Foi então que passei a ignorar
a lengalenga da inveja,
o riso alarve do despeito.

E fui feliz para sempre,
como era inevitável.

(2006)

terça-feira, março 07, 2006

Longe

Olho em redor e todos estão longe,
os vultos diluídos na paisagem,
e eu, que sempre busquei o que me foge,
recomeço a viagem.

("Lucro Lírico", 1973)

sexta-feira, março 03, 2006

Busca

Ouço o canto da folhagem, a suave
música do vento no arvoredo,
e sigo pelos campos da ternura,
em incessante busca.
Surgem pátios e poços e o choro
da água aprisionada nos regatos,
enquanto ao longe um piano
ou por vezes um violino
me reclama.
Pertenço às planícies verdes,
cultivadas por quem não espera
mais do que a vida pode dar.
Sou das praias desertas e das dunas,
onde brotam arbustos
aparentemente inúteis,
que no entanto as seguram.

(2006)

quarta-feira, março 01, 2006

Muros

Um muro e outro muro,
só a palavra, alada, os esvoaça,
ave marinha que defronta o escuro
e deixa o dia onde passa.

Mas onde achá-la, em que praia
desvendar o mistério do seu corpo?
Onde encontrar quem saiba
das paisagens que há dentro do seu rosto?

A todos os silêncios é a bruma
da memória gelada que os procura:
restos de coisa nenhuma,
morrendo aos poucos de lonjura.

("Lucro Lírico", 1973)