segunda-feira, maio 30, 2011

Longamente

Largo do Carmo
Olhei-te longamente e concluí
que não poderia viver sem ti.
Mas logo o medidor de ventos e marés
me soprou ao ouvido a evidência
de que tu, sendo tu, nem por isso és
o espelho de absoluta transparência
que te sonhei tanta vez.

No céu azul não raro surgem nuvens
e é frequente a chuva
vir perturbar o dia luminoso.
Por isso não me inquieto e vou em frente,
nesta certeza com que ouso
continuar a olhar-te longamente.

quinta-feira, maio 26, 2011

Outra vida

Mar meu
Não me acomodo à ideia
de ter só uma vida.
Quero outra, a seguir, que venha cheia
do que esta, avara e presumida,
me negou e podia ter-me dado.
Uma vida que seja realmente vida,
sem complexos de culpa ou de pecado
e, já agora,
que não seja de usar e deitar fora.
Uma vida, sei lá, que valha a pena
e me dê ocasião
de completar o que esta não deixou.
Uma vida nem grande nem pequena,
à medida do coração
que sou.

segunda-feira, maio 23, 2011

Bebedeira

Largo de Camões
És tu que me embebedas, não o vinho
que, embora bom, não chega a ter
a graduação precisa, o odor certo
do teu corpo sedento de carinho.
És tu que me embebedas, no prazer
de estar contigo, ter-te perto,
e não me interessa achar maneira
de me passar a bebedeira.

quinta-feira, maio 19, 2011

Enquanto

Telhados de Lisboa
Enquanto ainda não é noite, enquanto
o sol traça desenhos nos telhados,
enquanto sei que voltarás, enquanto
me recuso a ceder ante o cansaço.

Enquanto o dia continua, enquanto
a vida me mantém, tal como dantes,
preso ao encanto que foi nosso, enquanto
tudo começa e finda num instante.

Enquanto ainda brilha a luz, enquanto
não vingam o crepúsculo e o pranto.

segunda-feira, maio 16, 2011

Tudo

Campo das Cebolas
Tudo o que um dia soube e já esqueci:
nomes e caras, datas e lugares.
Todas as horas que passei sem ti
na esperança de voltares.
Todas as noites que concedi
à ruidosa solidão dos bares.
Tudo o que sempre quis e não achei
ou, tendo achado, joguei fora.
Todos os sonhos que não sonhei
antes de os ter mandado embora.
Tudo o que tive e nunca mais terei.

sexta-feira, maio 13, 2011

Esse dia

O jacarandá do Príncipe Real
Não adianta tentar o apagamento
do dia inevitável, esse dia
de recusa e mistério ao mesmo tempo,
supostamente inscrito na sombria
agenda que se diz caber
a cada um no acto de nascer.

Não adianta fingir, não adianta
esconder o nó que surge na garganta
de cada vez que se trata
de futurar essa data
que, alheia ao medo que desperta,
sabemos ser mais que certa.

(Problemas do Blogger - que se arrastaram por largas horas, hoje, sexta-feira, 13... - fizeram desaparecer este post, inicialmente publicado ontem de manhã, bem como os respectivos comentários).

segunda-feira, maio 09, 2011

Agora

Estação de Santa Apolónia 
Não é tarde nem cedo,
é agora.
Como quem de repente perde o medo
e desarvora.

Entre o sim e o não
vai o risco do fósforo, o instante
da decisão.
O resto é redundante.

O que importa é afrontar
as alamedas sonolentas
da noite perdida
e depois ignorar
as aves agoirentas,
recomeçando a vida.

("Destino do Mar", 1991, rev.)

quarta-feira, maio 04, 2011

Os jacarandás

Praça do Duque da Terceira, ao Cais do Sodré
Alguns já estão em flor e outros não,
mas a todos a floração
há-de chegar mais dia menos dia,
neste Maio lisboeta de desalento
a que eles emprestam por um momento
uma réstia de cor e alegria.

São os velhos amigos jacarandás
com o seu manto azul-lilás
a proteger a Lisboa amada
da angústia das horas más
a que tem vindo a ser votada.

segunda-feira, maio 02, 2011

Rumo

Rua Dom Pedro V
Ninguém sabe de nós, estamos perdidos
algures em pleno espaço sideral,
passados todos os sinais proibidos
que os acasos do tempo, bem ou mal,
atravessaram no nosso caminho.
Nenhum de nós, porém, estará sozinho
enquanto olhar o outro e vir a  imagem
sem fantasmas do rosto de quem ama
e, desprezando o rigor do programa,
souber salvar o rumo da viagem.