segunda-feira, março 29, 2010

Solidão

"Cocktail" de azulejos numa (nova) loja do Rossio

Por mais que cortes o canavial,
ele acaba por renascer
e voltar ao destino de conter
nas margens, bem ou mal,
as águas da ribeira.
Aliás, sem forçar o natural
curso da vida, não se vê maneira
de a coisa ser diferente.
Também a gente
vai construindo aos poucos a barreira
que nos afasta dos demais,
minimizando os sinais
da progressiva solidão.
E, sempre que o coração
a consegue abater,
ela irrompe e torna a crescer.

quinta-feira, março 25, 2010

Roleta

Rua de São Marçal

Sobre a vida parece ser comum
a ideia de que cada um
cumpre no palco um papel qualquer,
que lhe foi de antemão atribuido.
Ora, em meu entender,
isso não faz o mínimo sentido
e o termo que me ocorre é lotaria,
roleta de sorte e azar
onde, conforme o dia
e o número que nos calhar,
no vermelho ou no verde,
a gente ganha ou perde
e toca a andar.

segunda-feira, março 22, 2010

Os dias sobre os dias

Largo de Camões

Os dias sobre os dias, o ronceiro
correr do tempo, como se este não
tivesse a mais esplêndida expressão
no cigarro morrendo no cinzeiro.

A indiferença entre ser primeiro
ou último no meio da confusão
do voo rasante acomodado ao chão
das palavras que ficam no tinteiro.

Este não querer e no entanto querer
sempre cada vez mais e mais ainda.
Esta fome, esta sede, este desejo,

esta certeza absurda de saber
que tudo é espuma, tudo um dia finda,
e mesmo assim adiarmos o beijo.

quinta-feira, março 18, 2010

Fazer de conta

Travessa da Piedade, à Praça das Flores
Vamos fazer de conta que chegámos
à praia longamente desejada
e, vencida a tormenta, nos deitámos
na areia até que fosse madrugada.

Vamos fazer de conta que acordámos
e, libertos das conchas e dos limos,
de pronto e sem temor nos levantámos
para fazer de conta que existimos.

segunda-feira, março 15, 2010

Se me movesse a moda

Escadinhas do Duque

Se me movesse a moda, o que se usa,
era outra decerto esta poesia,
mas o que me fascina é a recusa
do prato do dia.
Não me venham dizer como devia
fazer para andar certo e estar na hora,
pois a única regra que me guia
é cantar sem jactância nem demora
a beleza das coisas e a alegria
de estarmos vivos e haver sol a rodos,
lembrando que este nasce para todos.

sexta-feira, março 12, 2010

Quadra (im)popular

Ainda e sempre o Rossio

Contra todas as loas,
eis a verdade prática:
os poetas são as pessoas
que mais sabem de matemática.

quarta-feira, março 10, 2010

Ao piano

Um gladíolo na varanda
Sentavas-te ao piano e tocavas Chopin
enquanto eu não chegava. Era a missa pagã
das luminosas tardes com que a Primavera
nos acordava ao fim da invernosa espera.
À margem do caminho as pedras rebentavam
em frágeis flores, como se as teclas que tocavam
os teus dedos de súbito achassem maneira
de dizer que me esperavas, inocente e inteira.

segunda-feira, março 08, 2010

Mal sem remédio

Largo de Santo António da Sé

Morre-se de medo, morre-se de tédio,
mas do que se morre mais
é de falta de amor, mal sem remédio
que nos faz desiguais.

Já morremos mil vezes, já morremos
de mil mortes, nem todas naturais,
e sempre renascemos
para amar um pouco mais.

Até que um dia a solidão,
daninha mãe das decisões finais,
nos proíba o coração
de bater mais.

sexta-feira, março 05, 2010

Asas

Acrílico sobre tela / TL, 2010

Rio parado no meio de nada,
já foste estrada
para o mar largo e distante.
Hoje és apenas o espelho
de um tempo cansado e velho
e não há mais quem te cante.

A mim, que vivo na margem
aguardando viagem
sem ter como navegar,
só me resta, rio amigo,
não me prender mais contigo,
ganhar asas e voar.

quarta-feira, março 03, 2010

De mãos dadas

Ainda o Cais do Sodré

Ficámos de mãos dadas e calámos
dentro de nós a raiva que sentimos
quando atónitos vimos
que nos falhara tudo o que sonhámos.
Incrédulos perante o que perdemos
e estava para além do imaginado
ficámos de mãos dadas e chorámos
e de mãos dadas morremos
sem inocência nem pecado.

segunda-feira, março 01, 2010

Dúvidas

Rua da Vitória

Se eu não tivesse dúvidas, não era
humano, mas de outra espécie qualquer.
Assim, tenho-as e muitas. Quem me dera
poder afastá-las e conhecer
o íntimo das coisas, a razão
última de elas serem como são.

As dúvidas são minhas e comigo
habitam, mas há muito ultrapassaram
a minha altura. Agora nem consigo
acompanhá-las, grandes que ficaram.
Ainda se a par delas eu tivesse
uma ou outra certeza, mas nem isso.
E quase tudo agora me parece
vazio, obscuro e talvez ao serviço
de causas que a minha alma desconhece.

É no entanto às dúvidas que tenho
que vou buscar a força e o engenho
para seguir em frente e não temer
as certezas que tanta gente em volta,
de uma forma que às vezes me revolta,
pretende que eu também devia ter.