quinta-feira, dezembro 30, 2004

Creta

Nunca talvez como em Creta
vieram ter comigo os deuses luminosos
que todas as manhãs
do mar emergem como potros.

Quando amanhece,
a intensa claridade cegadora
do princípio do mundo
transporta-nos ao tempo original
em que, por mais inexacto,
nada era mortal.

(1995)

quarta-feira, dezembro 29, 2004

Silves

Para além desta porta não há nada
e esta escada
pára de súbito no ar.

E que dizer da janela,
também ela ,
que já não dá para o mar?

Nada diremos,
nada.

Na memória arruinada
só persiste o apelo:
reter nas mãos o momento,
bebê-lo até ao fim,
bebê-lo lento,
no esplêndido ondular do teu cabelo.

("Destino do Mar", 1991)

terça-feira, dezembro 28, 2004

Jardim

Tu és o meu jardim. Há no teu corpo
as longas alamedas da infância.
E eu inventei, suspenso do teu rosto,
as palavras que vencem a distância.

("Lucro Lírico", 1973)

segunda-feira, dezembro 27, 2004

O ano de 1978

Só guardarei deste ano os nomes próprios:
o Rui Belo, o Nemésio, o Jorge de Sena.
O resto não me importa,
não entra no meu poema.

Só guardarei deste ano esses três nomes,
de uma luz impossível, cegadora.
O resto foi a fome,
o deserto, a penhora.

Só guardarei deste ano a farta herança
de futuro, que eles são.
A grande esperança
que me dão.

O resto é acidente,
o resto é nada,
minha pátria doente,
minha pátria adiada.

("Destino do Mar", 1991)

domingo, dezembro 26, 2004

História

Para a Maria João

Conta uma história! – pedes – e eu começo:
era uma vez um cavalinho,
que se perdeu do seu caminho,
nas terras do sem fim e sem regresso...

Mas leio no teu olhar a amargura
pela sorte do bicho – e logo invento
um fim feliz, à medida.

O que faz a ternura!
Nenhum poder do mundo é mais violento
a modelar a vida.

("Destino do Mar", 1991)

sexta-feira, dezembro 24, 2004

Natal

Como se a noite se fizesse dia
e se ouvisse de súbito uma voz,
um toque de clarim na manhã fria
que chamasse por nós.

Como se os nossos olhos deslumbrados
ao calor desse apelo se entendessem
e os homens seguissem irmanados,
onde quer que vivessem.

(1964)

quinta-feira, dezembro 23, 2004

Presença

Já não estás onde estavas, já não estás
onde sempre te vi.
Mas, olhando o lugar, sinto-te aí
e recupero a paz.

O que conta não é o que se sabe,
tão-pouco o que se vê.
O que conta é aquilo que não cabe
dentro dos olhos, mas se crê.

("Destino do Mar", 1991)

quarta-feira, dezembro 22, 2004

Destino do mar

Os mais terão por destino
sete palmos de terra e um caixão.
Eu, porém, desde menino
sei que não.

Não!
Não é a terra que me chama.
É outra voz que, da infância,
me namora e reclama:
a voz do mar,
vencendo, breve, a distância
que teima em nos separar.

("Destino do Mar", 1991)

terça-feira, dezembro 21, 2004

Cilada/cidade

Direi flor, floresta, planta,
direi mar de quem comigo
sente prender-lhe a garganta
o nó daquilo que eu digo.

Direi jardim, pátio, poço,
direi cisterna de quem
me estende o peito, o pescoço,
para que os diga também.

De ti direi
chaminé do navio do meu corpo,
ave do mar que não sei
se pousada em qualquer porto
que jamais atingirei.

Direi secura, se curo
da sede que sob a pele
me segue o sangue inseguro,
quando me debruço dele.

Direi casa, quadra, canto,
direi cilada, cidade:
palavras feitas do espanto
da própria incomodidade.

("Lucro Lírico", 1973)

segunda-feira, dezembro 20, 2004

Navios

Houve navios no mar da nossa infância.
Eram barquinhos de cartão
sem qualquer importância.
Mas agora à distância
olha como eles são:
paquetes a cortar a imensidão.

Não me digas palavras que recordem
os largos oceanos.
Ficaram para trás, são a desordem
de um passado de enganos.

Tanta coisa perdida, tanta que ficou
naufragada com os barcos de cartão.
Mas as praias de que sou
são as mesmas de então.

("Destino do Mar", 1991)

domingo, dezembro 19, 2004

Deserto próprio

Porque me deste tudo:
o corpo, a alma e esse jeito
de amar, inteiro e perfeito,
como ao princípio do mundo.


Porque a ti me entreguei
despido de mim, liberto
dos fantasmas que inventei
para meu próprio deserto.

("Deserto Próprio", 1994)

sábado, dezembro 18, 2004

Veneza

Tudo tão perecível,
tão frágil,
tão efémero
e, no entanto,
tudo tão perto do eterno.

(1975)

Árvore

De súbito acordado a meio da noite,
por um momento, apenas um momento,
sou o dono e senhor da tua ausência.

Árvore amiga em que, ave, me descanso,
no teu secreto corpo que inventei
encontra a minha noite à transparência
tudo o que sempre quis e não achei.

("Lucro Lírico", 1973)

quinta-feira, dezembro 16, 2004

Não é fácil

Não é fácil amar-te, não é fácil
colar à minha a tua pele.
Mas, por mais que faça,
não sei fugir à força que me impele
a confundir no meu o teu abraço.


Nós viemos de longe, muito longe,
escapados de nós mesmos, foragidos,
em busca do lugar donde
nos apelavam os sentidos.


Mas tão depressa nos perdemos, tão depressa
a memória das coisas nos fugiu
que, rápida, a estranheza
do tempo nos tomou, como se um rio,
em passando por nós, nos esquecera.


Não é fácil amar-te, não é fácil
possuir-se a ausência de si mesmo.
Mais difícil, porém, é sempre o espaço
a vencer de regresso ao que esquecemos.

("Destino do Mar", 1991)

terça-feira, dezembro 14, 2004

Por eles

Por essa gente parada
que há sempre em todas as gares
e da funda madrugada
nos lança estranhos olhares.
Por essa gente adiada
que há sempre em todos os bares.

Pelos que sonham índias e não têm
sequer um bote para as alcançar,
vascos da gama que de noite vêm
contar-me histórias para me acordar.

Pelos que, afinal, mantêm
vivo nas veias o mar.

("Destino do Mar", 1991)

segunda-feira, dezembro 13, 2004

Portugal

Fossemos nós a porta da Europa,
que nos figura o mapa,
e não o termo da rota
de uma qualquer nau pirata.


Fossemos nós o tal país de Abril,
de que nos fala o poeta,
e não o triste perfil
de mágoa, que nos espreita.


Fossemos nós a praia, o areal
no horizonte da esperança
e não este vendaval,
que não descansa.


Fossemos nós Portugal.

("A Porta da Europa", 1978)

domingo, dezembro 12, 2004

A casa iluminada

Houve um tempo em que nada estava certo:
a noite não era um rio
com a foz na madrugada.
Mas tu chegaste e o longe fez-se perto:
a labareda de frio
deixou-me a casa iluminada.

Houve um tempo em que tudo estava certo:
a noite era como um rio
com a foz na madrugada.
Mas tu partiste e, rápido, o deserto
engendrou o desafio
da nossa casa queimada.

Há, porém, ventos e navios
e há, nas amuradas,
suspensa a esperança de outros rios
e outras madrugadas.

É que todos os estios
são primaveras adiadas.

("Destino do Mar", 1991)

sexta-feira, dezembro 10, 2004

Algarve

Lembram-me os olhos,
faiscantes de tão quentes,
mas já me escapa a forma
exacta do seu rosto.
Das mãos fixei-lhe os dedos
finos e trementes,
embora fosse Algarve,
embora fosse Agosto.

Depois desapareceu,
feliz de não ter história
- primeira condição de ser feliz -,
deixando-me gravada
a um canto da memória
esta dor que nos dói,
mas não se diz.

("Destino do Mar", 1991)

quinta-feira, dezembro 09, 2004

Alcantarilha

Aqui é que sou eu,
aqui é que estou certo.
Regaço a que regresso,
natural e liberto,
neste chão que é o meu
me recomeço.

("Deserto Próprio", 1994)

quarta-feira, dezembro 08, 2004

Olhar do meu olhar

para a Maria João

Procuro uma desculpa para a vida
e só a vejo em ti.
Olhar do meu olhar, imagem repetida
da imagem que a mim mesmo construí.

Mas, não sei por que fados,
logo uma nuvem estranha nos rodeia.
Será que nem nos restam os bocados
do castelo que erguemos na areia?

(1982)

domingo, dezembro 05, 2004

Amanhã

Não me digam que espere, eu quero já.
Cedo era ontem, amanhã é tarde.
Capitão de navios que já não há,
não vou deixar que o tempo me deserde.

Portanto, agora!
Hoje é que eu sou no gume da navalha.
Todo o minuto de outra hora
é a margem-viagem que me falha.

Já é que eu sou – e não me peçam nada
para amanhã, que é tarde.
Larguei todo o meu pano à madrugada,
não vou deixar que o tempo me deserde.

("A Porta da Europa", 1978)

sábado, dezembro 04, 2004

Bebedeira

Entre chegar e largar,
basta-me ter
um pouco de ternura para dar
e receber.

Basta-me o teu olhar, essa maneira
de me fitares assim:
a grande bebedeira
de gostares de mim.

("Destino do Mar", 1991)

sexta-feira, dezembro 03, 2004

Um muro

Um muro e outro muro,
só a palavra, alada, os esvoaça,
ave nocturna que defronta o escuro
e deixa o dia onde passa.


Mas onde achá-la? Em que praia
desvendar os mistérios do seu corpo?
Onde encontrar quem saiba
das paisagens que há dentro do seu rosto?

Em todos os silêncios há a bruma
da memória gelada que os procura:
restos de coisa nenhuma,
morrendo aos poucos de lonjura.

("Lucro Lírico", 1973)

quinta-feira, dezembro 02, 2004

Gaivotas

Caminhamos descalços sobre brasas,
mas valem-nos as asas
que ganhámos nos pés.
Gaivotas inseguras, nós roubamos
à força com que, leves, caminhamos
a força das marés.

Mas já nos atormenta este exercício
de voo ao desatino.
Há que mudar de ofício
e forçar o destino.

("Destino do Mar", 1991)

quarta-feira, dezembro 01, 2004

Direita/esquerda

À direita a cabeça, o coração à esquerda,
sina difícil que me coube em sorte.
Inútil é, porém, forçar a estrela:
serei assim até à morte.

Por entre enganos, glórias e derrotas,
fura-vidas na luta do destino,
abro, para as fechar, todas as portas
que me aparecem no caminho.

Mas sei, de ciência certa,
quanto, podendo dar-me, não me dei:
a consciência desperta
diz-me onde, errando, não errei.

("Destino do Mar", 1991)