quinta-feira, junho 30, 2011

A palavra precisa

Rua da Misericórdia
Mesmo que o tempo me sobrasse e nada
viesse opor-se à busca que empreendo,
estou certo de que nunca, assim o entendo,
a poderia dar por acabada.

Porque procuro o que não há ou, se há,
só pode ser algures noutro planeta:
uma palavra simples e directa,
tão pura que ninguém a disse já.

Uma palavra original e exacta
a exprimir com verdade e com rigor
os laços que nos unem e, à falta
de outra melhor, nós chamamos amor.

segunda-feira, junho 27, 2011

Lucidez

Cais das colunas
É quase noite, talvez um abrigo
nos conviesse, mas nós somos aves
que desconhecem o sabor do perigo,
não admitindo medos nem entraves,
e assim riscamos o azul sem fundo
com desenhos de nuvens, como jactos
lançando contra as convenções do mundo
a lucidez veloz dos nossos actos.

quinta-feira, junho 23, 2011

Gente

Silves
Gente que se eclipsou da nossa vida,
mas deixou, positiva ou negativa,
uma marca durável, forte e viva,
por mais que a pretendamos esquecida.

Gente que, embora longe e adormecida
em qualquer canto da memória esquiva,
reaparece sempre inteira e altiva
quando alguma gaveta é revolvida.

Gente que porventura um dia amámos
para no outro dia abandonar
tão depressa como nos entregámos.

Gente que, sendo parte do que fomos,
nunca mais poderemos apagar
do arquivo indelével que hoje somos.

segunda-feira, junho 20, 2011

As mãos

Das ruínas do Carmo
Mãos em busca, mãos frementes
de desejo do teu corpo,
mãos inquietas, mãos doentes
de não te alisar o rosto,
mãos em ânsia de abater
um a um os altos muros
e os motivos obscuros
que as subtraem ao prazer
dos teus mais fundos segredos,
mãos sem fantasmas nem medos,
mãos sempre aptas a vencer.

quinta-feira, junho 16, 2011

Espuma

Armação de Pêra
Talvez não tenha a fé inabalável
dos que crêem sem ter visto
e a verdade é que não resisto
à dúvida razoável:
se o tédio é a eternidade,
obrigado, mas dispenso.
Prefiro buscar no mar imenso
a completa liberdade
e pode ser que volte feito espuma
à praia a que pertenço
desde a mais tenra idade
sem dúvida nenhuma.

segunda-feira, junho 13, 2011

Uns olhos claros

No jardim do Príncipe Real
Os olhos são tão claros que não sei
de palavras que possam traduzir
tamanha transparência. Nunca achei
nos rostos que já vi ou inventei
e muito menos pensei existir
olhar assim translúcido e brilhante
que seduz e cativa num instante.

Os seus gestos são calmos e suaves
e tem na voz a música das aves
mais doces que se escutam na floresta.
Por isso me encantou e me traz preso
e a toda a hora deslumbrado rezo
para que jamais finde a nossa festa.

quinta-feira, junho 09, 2011

O anónimo feliz

Rua do Poço dos Negros
As pessoas que eu amo, os meus amigos,
os que sempre quis ver livres de perigos,
sabem do barco, frágil mas veloz,
em que, à vista de todos e sem medos,
vou navegando a não sei quantos nós
rumo ao porto dos segredos.
E como habitam o meu coração
e me adoçam a vida a cada hora,
eu sei que, em me entregando, eles me dão
em troca e sem demora
algum sentido para a solidão
com que tento passar despercebido
em meio do grande alarido.
O que é como quem diz:
quanto mais anónimo, mais feliz.

segunda-feira, junho 06, 2011

O melhor

Tejo meu
O melhor é soltar o coração
e deixá-lo, sem rédeas nem arções,
correr as praias da invenção.

O melhor é libertá-lo
de arreios, freios e prisões,
jovem e feliz cavalo.

O melhor é largá-lo à desfilada
e não olhar a nada.

quinta-feira, junho 02, 2011

Não existimos

Rossio, ontem
Vamos fazer de conta que foi tudo
apenas fruto da nossa ilusão
e o planeta rodou solene e mudo,
alheio ao facto de sermos ou não
tripulantes de um barco imaginário
arrancado ao mar fundo e temerário.

Vamos fazer de conta que largámos
de outra galáxia, outro continente,
e ao acaso ancorámos
algures num cais contra a corrente
de ideias feitas, preconceitos,
códigos, normas e preceitos.

Vamos fazer de conta que surgimos
do nada para o nada desta hora
e, olhando em volta, sem demora
soubemos que afinal não existimos.