Saudades de nós

Largo do Carmo / Foto TL, 2009

Por muito que tentemos disfarçar,
não é daquilo que perdemos
ou um dia tivemos de deixar,
sejam coisas, pessoas ou cidades,
que, às vezes mais, outras menos,
nós sentimos saudades.
O que, em rigor, nos atormenta
e persegue é a memória
dolorosa e não raro ternurenta
de nós mesmos nessa história.

Elogio do anonimato

Rua da Caridade, a S. José / Foto TL, 2009

Ao contrário do que em geral se pensa,
quanto mais fores anónimo mais solto
estarás para chegar ao que te interessa:
esse distante e desejado porto
que tem um nome frágil, felicidade,
e só pode atingir-se em liberdade.

Vives num tempo que erigiu a treta
do rápido caminho do estrelato
como objectivo único de vida.
Mas algum dia hás-de saber que a meta
que persegues está no anonimato
da luta rumo à terra prometida.

Agora

Cais do Sodré / Foto TL, 2008

O tempo corre, o tempo foge,
o tempo é o inimigo,
mas o que importa é hoje
eu estar vivo e estar contigo.
Já me esqueci do que passou
e o amanhã soa-me incerto.
O que conta é ter-te perto
agora - e a isso me dou
inteiro e, por fim, liberto
do que não quero nem sou.

Íntimo

Acrílico sobre tela / TL, 2007

Tem a graça que dá a natureza
aos seres que gera livres e perfeitos,
exibindo sem peias nem defeitos
o refrescante riso da beleza
que só tem o que é puro e original,
acima do que é bem e do que é mal.

Por isso me dei todo a aprender
uma por uma as linhas do seu rosto
e nas ruas secretas do seu corpo
descobri a receita do prazer
que, estando além daquilo que se sente
na pele, toca o íntimo da gente.

Indícios

Rua Augusta / Foto TL, 2009

Fui dispersando indícios na esperança
de que tu os juntasses e um dia
chegasses até mim como te queria
e cedo te sonhei desde criança.

Guardo ainda bem nítida a lembrança
do tempo em que sozinho percorria
as ruas da cidade estranha e fria,
certo de que quem busca sempre alcança.

Mas tu passaste e não deste por nada
e os indícios sumiram-se no fumo
do trânsito, entre as pedras da calçada,

e eu, que me dou aos desafios que assumo
e sei que a noite cede à madrugada,
levantei-me e segui um novo rumo.

Estendal

Foto TL, 2009

Sabemos sempre pouco das pessoas
que é suposto conhecermos:
todas, é claro, têm os seus termos
e não as há más nem boas
que o sejam inteiramente.
Convém, assim, ter presente
que cada um só revela,
do que é, uma parcela
e, por sinal,
não raro é mais o que esconde,
aqui, ali, sei lá onde,
do que mostra no estendal.

Guerras perdidas

Beco do Rosendo, ao Poço do Borratém / Foto TL, 2009

De nada te valeu teres ido à guerra
porque todas as guerras são perdidas,
desde logo por quem pensa que as ganhou.
No deve & haver que o coração encerra
depois de tudo, pesam muito as vidas
que a fatídica foice em má hora ceifou.
E por isso mesmo te persegue a memória
desolada do tempo que queres apagar
como se pudesses reescrever a história
e deitar ao lixo o que não tem lugar
no romance sem fim que andas a inventar.

Regresso

Foto TL/2008

De uma beleza que me cegava,
era tão leve quando passava
que até a alma me estremecia.
E o simples facto de ver passar
ser tão etéreo, tão singular,
trazia alento para o meu dia.

Mas, como tudo o que é bom na vida,
essa visão que me era tão querida
foi-se depressa, desapareceu.
E eis que fiquei sentado no cais
esperando o barco que não vem mais,
até um dia, sei lá bem eu.