quarta-feira, agosto 31, 2005

Lisboa

Cidade luminosa, que entre as tuas
muitas e desvairadas gentes
me acolheste um dia,
deixa-me confessar-te
a alegria de te amar ainda.

Manténs o porte antigo
e ao mesmo tempo adolescente
da primeira vez que te vi
a pentear os cabelos à janela
debruçada sobre o Tejo.

Nos caminhos do teu corpo,
repleto de mistérios e segredos,
aprendi a olhar-me e entender-me,
do mesmo passo que te olhava
e entendia.

Lisboa, minha amante, minha amiga
e minha melhor cama,
és tu que embalas ainda
as esplêndidas noites
claras como os dias
do nosso eterno Agosto.

(2005)

domingo, agosto 28, 2005

Deslumbramento

Deslumbram-me as palavras,
a sua frágil consistência, o ar humilde
que aparentam quando encaram
a minha impertinência.

Uso-as como quem percorre
a casa, a sala, o quarto de vestir.
Somos amigos desde sempre, não existe
entre nós qualquer reserva.

Por vezes, uma ou outra
rebela-se e avança como se
me julgasse alheado
da sua imanente dignidade.

Nada disso, porém, anula o pacto
que muito cedo firmámos,
mútuos escravos que somos.

(2005)

quinta-feira, agosto 25, 2005

Resistir

Ao olhar-te nos olhos, sei que me perguntas
a atitude certa, aquela que mais serve
o caminho que tens de prosseguir.
E a minha resposta, de entre muitas
que poderia dar-te, é a mais breve:
resistir, simplesmente resistir.

A vida só interessa se não for
uma cedência à dor
que nos persegue desde que nascemos.
Se for combate permanente,
um constante remar contra a corrente
que teima em afastar-nos do que queremos.

(2005)

segunda-feira, agosto 22, 2005

Etapas

Não te detenhas nos corredores sombrios,
são apenas etapas que importa ultrapassar.
De qualquer modo, não passam de episódios
e têm forçosamente um fim.

Os precipícios só existem
na cabeça de quem os inventa.

Nunca cedas ao medo das viagens longas,
de que a vida também se faz.
Na primeira carruagem dos comboios nocturnos
viaja sempre a madrugada.

Quando o sol te acordar, verás que o pesadelo
não passou disso mesmo, um pesadelo.

(2005)

sexta-feira, agosto 19, 2005

Não chores

Quando choras, dói-me a alma até ao fundo.
É uma dor aguda, maior do que a do peito,
se uma lança o atravessa.

Quando choras, invento mil palavras
para te confortar.
Mas é a mim que falta a mais urgente,
a que mitigue a dor sem nome
de te ver chorar.

Não chores, minha querida,
nada merece as tuas lágrimas.

(2005)

quarta-feira, agosto 17, 2005

Palavras e palavras

Nem todas as palavras são iguais.
Algumas há repletas de veneno
e outras semelham espadas
longamente afiadas.

Muitas amargam-nos a boca,
como bagas silvestres,
ou rasgam-nos a pele na passagem.

Mas há-as doces como os frutos
colhidos no quintal.
Só estas me convêm,
as demais dispenso.

(2005)

domingo, agosto 14, 2005

Enseada

Viajei sem cessar pelos países
que completam o rol dos continentes
e frequentei estranhas gentes
em paragens distantes e felizes.

Calcorreei veredas e caminhos
de que ninguém alguma vez
supusera a distância
e venci pedras e espinhos
para voltar às marés
das doces praias da infância.

Mas foi na enseada do teu corpo
que achei por fim o meu porto.

(2005)

quarta-feira, agosto 10, 2005

Viagem

Há manhãs que nos acordam como se a dor do mundo
tivesse dormido connosco e não quisesse abandonar-nos.
Carregamos o seu peso sobre as costas,
entre o desconforto e a resignação.

Certas corridas cansam, outras retemperam.
Quem vagueou sem bússola através de continentes
sabe bem que não existe
outro sentido que não seja em frente.
Quando se pára, pára-se de vez
e não há retorno.

Qualquer dia, a surpresa da viagem
vai por força colher-nos.
Mas ninguém provou ainda que não seja boa.

(2005)

domingo, agosto 07, 2005

Não sei

Não sei se eras de sal, areia ou espuma,
se eram algas os fios do teu cabelo,
se saíras do mar ou de nenhuma
outra coisa que não o meu apelo.

Não sei que sol do sul irradiavam
as tuas mãos, de súbito estendidas
para estas mãos que há muito as esperavam.

Apenas sei que, ao fim de tantas vidas
que vivi prisioneiro dos meus medos,
me descobri liberto entre os teus dedos.

(2005)

quarta-feira, agosto 03, 2005

Sono

Cada vez tenho menos tempo para não fazer nada,
o que muito me consome.
As horas passam depressa
e os dias correm, cavalos sem freio,
contra o meu direito a cruzar os braços.

Resta-me ir descansando
entre as viagens através do sono.

(2005)

segunda-feira, agosto 01, 2005

A poesia

A poesia não é um código secreto
acessível apenas a alguns
nem uma sucessão de palavras
ininteligível pelo próprio autor.

A poesia é uma tentativa
de entender a vida.

(2005)