quarta-feira, junho 22, 2005

Esquecimento

Embora desiguais no sofrimento,
nós somos por igual todos mortais
e o destino comum é o esquecimento.

Mas só morre quem não se lembra mais,
pois cada um é mais do que o momento
que lhe cabe viver entre os iguais.

(2005)

segunda-feira, junho 20, 2005

A minha vida

A minha vida não é escrever poemas
nem os poemas são a minha vida,
mas de cada vez que escrevo um poema
sinto que ganhei o dia.

(2005)

sexta-feira, junho 17, 2005

A memória da casa

A memória da casa acompanha-me, é uma sombra
caminhando a meu lado em silêncio circunspecto.
A velha amiga tem corredores
povoados de portas e quadros dos avós
de que ninguém decerto lembra já os nomes.

Eu sigo leve, frágil e aturdido,
de quarto em quarto,
mergulhando em arcas sobre arcas,
que escondem figos secos,
vestidos longamente roídos pela traça,
um ou outro brinquedo de madeira.

Na sala de jantar há um piano antigo
a desfazer-se aos poucos de saudade
dos tempos em que o afagavam
entre o chá de tília e os sonhos.

Quando a insónia e o desânimo
se insinuam na noite e me convidam
para o seu labirinto,
é a memória da casa que me traz,
claríssima, a manhã em que renasço.

(2005)

terça-feira, junho 14, 2005

Alma

Quero dar-te o essencial:
o som de uma guitarra ao fim da tarde,
o piano de Chopin tocando ao longe
e o odor a jacarandá na Praça das Flores.

Quero dar-te o pôr-do-sol da ria de Faro
e o verde, a perder de vista,
que escorre das muralhas do castelo de Silves.

Quero dar-te o límpido horizonte
de Armação de Pêra, onde aprendi a amar o mar,
e o branco-rosa das amendoeiras
de Alcantarilha, meu eterno recomeço.

Quero dar-te a minha alma.

(2005)

domingo, junho 12, 2005

Os jacarandás

Todos os anos, por Maio e Junho,
Lisboa põe o seu chapéu azul-violeta
e é a festa.

Enquanto florirem os jacarandás,
nada de mal nos pode acontecer.

(2005)

quinta-feira, junho 09, 2005

O teu nome

Fiz gravar o teu nome em cada esquina
da rua onde te vi pela primeira vez
e vou mandar esculpi-lo ao alto da colina
para que todos saibam que tu és
a pessoa que eu amo, a que me fez
vencer as incertezas e a neblina.

(2005)

terça-feira, junho 07, 2005

Fado de Alfama

Não tem vielas, tem veias,
Alfama virada ao rio,
ancorada nas areias
como se fora navio.
Não tem vielas, tem velas
içadas em desafio.

Debruçada das janelas
por onde assobia o frio,
postigos de caravelas
a que o mar nunca se abriu,
Alfama persegue o cheiro,
nas voltas das escadinhas,
de algum amor marinheiro
sabendo a sal e sardinhas.

Na água dos chafarizes
mata a sede da lembrança
desses momentos felizes
em que nunca foi criança.

Ancorada nas areias
como se fora navio,
não tem vielas, tem veias,
Alfama virada ao rio.

(Letra musicada por Nuno Nazareth Fernandes
e gravada por Maria da Fé para Discos Estúdio, 1971)

sexta-feira, junho 03, 2005

Excesso

Amor só é amor se for em excesso.
Ou se ama sem limite ou não se ama.
Só ama de verdade quem dá tudo.

Não há meio termo, não, não há processo
de amar sem se ter sempre acesa a chama
que nos transforma, transformando o mundo.

(2005)

quarta-feira, junho 01, 2005

Sabes bem

Sabes bem que estarei sempre contigo,
nas tempestades e nas horas calmas,
que todas as palavras que te digo
saem das profundezas da minha alma.

Sabes bem que em mim tens o ombro amigo
que falta a tanta gente e dá origem
ao mal do mundo, acentuando o perigo
da súbita cedência ante a vertigem.

Mas, como o amor nem sempre é uma troca,
embora saiba tudo o que tu sabes,
não alimento grandes ilusões.

Eu só quero, afinal, da tua boca
os risos e as palavras mais suaves
para todas as minhas estações.